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Gibi, 85 anos: a história da revista de nome racista que se transformou em sinônimo de HQ no Brasil - Edison Veiga Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

 

Imagem de 1973, com o menino símbolo da revista em traços racistas

CRÉDITO,RICHARDSON SANTOS DE FREITAS/ ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Gibi, o mascote que dava nome à publicação, em representação estereotipada e racista de um menino negro, em ilustração de 1973
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Um dicionário de português brasileiro hoje certamente trará a definição de gibi como “nome dado às revistas em quadrinhos” — ou algo parecido com isso. Nos anos 1930, contudo, o verbete tinha cunho racista: era “menino negro”, “negrinho”, “tipo feio e grotesco”.

Em 12 de abril de 1939, há exatos 85 anos, a editora O Globo lançou uma revista em quadrinhos chamada Gibi. Na capa, como um símbolo, todos os números traziam uma representação estereotipada negativamente de um menino negro, o tal “gibi”, mascote que emprestava nome à publicação.

Os traços eram carregados de um viés pejorativo e discriminatório. Em conversa com a BBC News Brasil, a cartunista Laerte definiu essa ilustração como “um menino negro como se desenhava em tempos de racismo livre”.

Em destaque, o menino entregador de jornal, o 'gibi', que aparecia em todas as edições

CRÉDITO,RICHARDSON SANTOS DE FREITAS/ ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Em destaque, o menino entregador de jornal, o 'Gibi', que aparecia em todas as edições

Fato é que Gibi se tornou um sucesso nacional. Tão grande que, em pouco tempo, seu nome deixou de ser uma palavra ofensiva e preconceituosa. Tornou-se sinônimo de revista de histórias em quadrinhos.

O mais bem-sucedido quadrinista do Brasil, Mauricio de Sousa sempre conta que aprendeu a ler por causa de historinhas assim. “A primeira [revista] que vi achei caída na rua. Era um exemplar de O Guri [publicação semelhante lançada pelo Diários Associados em 1940]. Fiquei encantado”, conta ele à BBC News Brasil. “Tanto que minha mãe me alfabetizou em três meses, para que eu pudesse ler sozinho e não a amolasse mais. Eu tinha de 4 para 5 anos.”Pule Matérias recomendadas e continue lendo

“Ela fez parte da minha formação como escritor e desenhista”, completa o quadrinista. “O mundo deu voltas e, há muitas décadas, minhas revistas também são chamadas de gibis.”

Anúncio da revista Gibi

CRÉDITO,RICHARDSON SANTOS DE FREITAS/ ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Anúncio da revista Gibi
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O cartunista e jornalista José Alberto Lovetro, o JAL, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, lembra que essa apropriação do nome foi tamanha a ponto de que gibi “se transformasse em uma generalização quando se fala em revista em quadrinhos”. “A importância dessa denominação fez com que, já nos anos 1980, uma biblioteca de quadrinhos tivesse a denominação de ‘gibiteca’”, ressalta ele, à BBC News Brasil.

“A diversidade de personagens e autores diferentes constantes naquele tipo de publicação atingia vários públicos. Foi a entrada dos personagens americanos em massa no Brasil com seus super-heróis misturados com infantis e histórias de humor. Isso estimulou muitos novos leitores por conta de que antes eram publicados no Brasil apenas revistas infantis, como a Tico-Tico”, enfatiza Lovetro.

Para ele, Gibi despertou a paixão por quadrinhos no Brasil, criando “mais leitores e adoradores” do gênero. “Hoje temos o Mauricio de Sousa, com sua Turma da Mônica, que vende mais de 12 milhões de revistas impressas ao ano, demonstrando que esses leitores infantis são a base do estímulo à leitura de quadrinhos e que ajuda a sustentar mais de 10 milhões de leitores ativos, que compram pelo menos uma revista de quadrinhos impressa ao ano”, analisa.

Pioneira na pesquisa de quadrinhos no Brasil, a jornalista Sonia M. Bibe Luyten, autora de, entre outros livros, Histórias em Quadrinhos: Leitura Crítica, ressalta que a trajetória de Gibi “é uma história longa que precisa ser contextualizada para se poder entender o que se passou na década de 1930 no mercado editorial e jornalístico”.

“Na minha opinião, o Brasil replicou 40 anos mais tarde o que aconteceu nos Estados Unidos”, diz ela, à BBC News Brasil.

Capa da revista Gibi

CRÉDITO,SONIA LUYTEN/ ARQUIVO PESSOAL

A palavra 'gibi'

O cartunista e biblioteconomista Richardson Santos de Freitas, o Ric, debruçou-se sobre a história da revista Gibi em trabalho acadêmico apresentado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2023.

Ele fez um apanhado histórico da evolução do termo gibi. “Surge como um apelido para meninos negros, giby, e meninas negras, gibi, baseado na palavra latina ‘gibbus’, que significa uma pessoa corcunda ou com corpo disforme”, esclarece ele, à reportagem, lembrando que encontrou registro desse uso em jornal de 1888.

Foto de página do dicionário Lello Universal, publicado nos anos 1940

CRÉDITO,RICHARDSON SANTOS DE FREITAS/ ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Verbetes do dicionário Lello Universal, publicado nos anos 1940

“A partir de 1905, com o fim do regime de escravidão e a importação de teorias eugenistas para tentar implantar uma política de branqueamento da população do Brasil, gibi torna-se gíria para meninos negros, com significado racista”, acrescenta.

“Os dicionários captam e passam a adicionar a gíria como verbete de suas edições, atribuindo dois significados à palavra: de menino negro; e de um tipo feio, grotesco e hediondo. Atrelado a isso, os negros nos jornais e revistas da época eram retratados de foram estereotipadas, com desenhos […] que se tornam uma tendência de estilo.”

Sim, eram tempos de “racismo livre”, como pontuou Laerte.

Em meio a esse cenário, crianças e adolescentes negros, pela vulnerabilidade social, eram os que mais buscavam sub-empregos nas grandes cidades. “Entre esses trabalhos, estava a venda de jornais pelas ruas. Eram conhecidos como os pequenos vendedores de jornais, formados por crianças em situação de extrema pobreza. Alguns eram imigrantes italianos que traziam a experiência dos gazeteiros, outros eram os meninos negros, os ‘gibis’”, diz Freitas.

“Esses gibis saíam pelas ruas anunciando as manchetes da edição do dia. Logo, ganharam a simpatia de diversas pessoas. Os próprios jornais publicavam editoriais exaltando a figura trabalhadora do pequeno vendedor”, contextualiza o cartunista.

Ilustração da última edição da revista, de 1975

CRÉDITO,RICHARDSON SANTOS DE FREITAS/ ARQUIVO PESSOAL

Legenda da foto,Ilustração da última edição da revista, de 1975

Considerado o pai dos quadrinhos do Brasil, o jornalista e editor russo naturalizado brasileiro Adolfo Aizen (1904-1991), colaborador dos jornais do Grupo Globo, viajou em 1931 para os Estados Unidos. Ali, encantou-se com uma novidade: suplementos de jornais, cadernos dedicados especificamente a temas policiais, esportivos, femininos e infantis.

“Entre eles, os suplementos infantis eram um dos mais promissores”, afirma Freitas. “Quando voltou, Aizen tentou convencer [o proprietário do grupo, o jornalista e empresário Roberto] Marinho [(1904-2003)] a implantar isso no jornal O Globo.”

Inicialmente, seu projeto foi recusado. O empresário avaliou que a ideia era de alto risco financeiro.

“Aizen então buscou outra parceria e, em 1934, lançou o Suplemento Infantil pela editora do jornal A Nação”, conta Freitas.

Ao que parece, o tino comercial de Marinho estava equivocado. As vendas do jornal triplicavam nos dias de veiculação do caderno especial de Aizen. Mesmo assim, o editor de A Nação não gostou: acreditava que esse tipo de material tirava a credibilidade de sua publicação.

O jornalista russo-brasileiro então criou sua própria editora, chamada de Grande Consórcio Suplementos Nacionais. “O sucesso de vendas de seu ex-funcionário fez Marinho reavaliar e se aventurar no segmento promissor”, detalha Freitas. “Chegou a convidar Aizen para uma conversa e lhe propor uma parceria, que foi recusada.”

“Os dois grandes magnatas do Brasil, Roberto Marinho e Adolfo Aizen, eram concorrentes ferrenhos e cada um lançava algo diferente em seus jornais para vender mais”, explica Luyten.

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