Como realmente era a América antes da chegada de Colombo? - Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil - 12 de outubro de 2021 - América Latina
Quando Cristóvão Colombo chegou ao outro lado do Atlântico em 12 de outubro de 1492, o “novo mundo” era um lugar complexo, diverso e fascinante.
Ao contrário do que fizeram parecer muitos relatos de europeus na época, o continente era muito povoado e abrigava sociedades dinâmicas, cuja sofisticação, em muitos casos, não tinha paralelo na Europa.
Nas Américas viviam entre 40 e 60 milhões de pessoas, segundo estimativas mais recentes. Elas falavam cerca de 1.200 idiomas diferentes, agrupados em 120 famílias linguísticas, disse à BBC News Brasil Charles C. Mann, autor do livro “1491 - Novas revelações das Américas antes de Colombo”.
Desde estruturas sociais quase democráticas, passando pelo manejo de florestas e o domínio da engenharia e da matemática, os povos originários da região ajudaram a criar grande parte do mundo que vivemos hoje, mesmo que não tenham recebido o crédito. Um exemplo disso é o milho, uma criação mesoamericana que revolucionou a alimentação humana e se tornou um componente essencial na dieta mundial.
“A domesticação e a manipulação genética de plantas é a tecnologia mais impressionante desenvolvida pelos indígenas na América”, disse à BBC Brasil o arqueólogo americano Kurt Anschuetz, especialista na agricultura de povos pré-colombianos da América do Norte.
Os nativos também tinham “uma dieta mais equilibrada e mais nutritiva” do que em outras partes do mundo na época, graças não somente ao milho, mas também ao cultivo da batata, do abacate, do tomate e das abóboras, entre outros. Diferentemente do que ocorría no “velho mundo”, não havia evidência de períodos de fome prolongada entre eles, segundo Charles C. Mann.
As plantas também são o principal indício de que existia um intercâmbio entre norte e sul. No entanto, até hoje os arqueólogos não sabem explicar exatamente como espécies domesticadas na Amazônia, como o tabaco, chegaram à região do atual Canadá ou o cacau mesoamericano à América do Sul, sem uma rota direta, animais de carga ou caravanas.
À partir do século 15, muitos dos povos originários foram dizimados por doenças trazidas de além-mar que chegaram através dos rios ou de animais, até mesmo antes do contato direto com os europeus.
No choque entre dois mundos que se seguiu à chegada de Colombo, muitas das formas de vida e das estruturas construídas no continente foram rapidamente destruídas, deixando perguntas que os especialistas ainda tentam responder. Esse é um dos motivos pelos quais é difícil obter informações sobre todos os que viviam na América pré-colombiana.
Nessa reportagem especial da BBC News Brasil, nos concentramos em uma seleção, feita com a ajuda de antropólogos e arqueólogos, das maiores e mais influentes culturas da região logo antes da chegada dos espanhóis e portugueses.
Em alguns casos, elas deixaram mais evidências arqueológicas das suas sociedades. Em outros, como no caso dos povos da Amazônia, descobertas mais recentes estão mudando completamente o que se acreditava sobre a vida no continente.
AMÉRICA DO NORTE
As dezenas de culturas que viviam desde o atual Canadá até o extremo norte do México costumavam se organizar em comunidades menos monumentais e mais igualitárias do que os grandes reinos da Mesoamérica, por exemplo — e muito mais do que as monarquias europeias do século 15.
Estima-se que nessa parte do continente havia cerca de 5 milhões de pessoas quando chegaram os primeiros europeus.
“Em geral, eram povos que viviam em grupos relativamente pequenos e se juntavam para ajudarem-se mutuamente, mas colocavam limitações muito claras ao poder das suas autoridades”, diz Charles C. Mann.
Em algumas sociedades, tudo tinha que ser decidido por consenso e os líderes podiam inclusive ser destituídos pelo povo — ideias que continuavam impressionando os teóricos do iluminismo francês no século 18.
AMÉRICA DO NORTE
Haudenosaunee
As nações indígenas Mohawk, Onondaga, Oneida, Cayuga e Seneca, formavam o povo Haudenosaunee e viviam em áreas rurais densamente povoadas.
Suas aldeias eram extensas e ficavam próximas uma à outra, mas não havia uma capital específica.
“Dessa forma, todos ficavam mais próximos do suprimento de comida. Na América do Norte não havia animais de carga como o cavalo. Por isso, transportar alimentos até uma cidade grande era mais difícil”, diz Charles C. Mann.
Os haudenosaunee formavam uma confederação regida por um governo com leis aprovadas por um conselho em que homens e mulheres tinham poder de decisão, inclusive sobre as guerras.
Na prática, segundo especialistas, era um governo de consenso, como uma democracia sem partidos.
Isso impressionou os europeus que, quando chegaram à América, ainda viviam sob monarquias absolutistas em sociedades extremamente desiguais.
Atualmente, os haudenosaunee são a única nação indígena oficialmente reconhecida nos Estados Unidos como um povo originário que influenciou a constituição e a forma de governo americanas.
Charles C. Mann acredita que a semelhança entre o sistema político dos nativos e o atual é pequena, mas diz que o impacto cultural causado pela forma de vida dessa e de outras nações indígenas é inegável.
“Os europeus encontraram povos que não tinham medo de seus governos, que eram autônomos e que riam da ideia de que a nobreza era hereditária. Essas foram lições importantes que aprenderam com eles”, afirma.
Culturas mississipianas
As culturas mississipianas eram um grupo extenso de cidades que compartilhavam as mesmas práticas religiosas e visões de mundo.
Se estendiam pelo meio-oeste, o leste e o sudeste do que seriam atualmente os Estados Unidos, chegando até a fronteira com o Canadá.
“Em seu apogeu, pouco antes do ano 1400, a extensão territorial desses povos era equivalente ao que chamamos de ‘cristandade’ na Europa na mesma época. Isso nos dá uma ideia de quão influente essa cultura foi na América do Norte”, explica Charles C. Mann.
As cidades mississipianas mais importantes tinham conjuntos de montículos de terra em forma de pirâmide ou plataforma, sobre os quais se construíam casas e templos.
Entre elas esteve a imponente Cahokia — já desabitada quando chegaram os colonizadores — e também Moundville, o segundo maior centro urbano daquela cultura.
Mais que centros políticos ou comerciais, esses locais eram pontos importantes para a vida social e mística dos mississipianos. Alí aconteciam enormes festivais religiosos e sacrifícios em massa, segundo revelaram escavações arqueológicas.
No entanto, pouco antes da chegada dos europeus, Moundville, assim como outras antes dela, deixou de ser habitada e passou a ser um local reservado para enterros e peregrinação religiosa.
“Hoje se consideram duas possibilidades: uma delas, segundo os indígenas descendentes dos mississipianos, é que eles acreditavam que as cidades tinham uma missão e um ciclo de vida. Depois de algum tempo, saíam delas para que se transformassem em outra coisa. A segunda possibilidade é que abandonaram Moundville porque se cansaram de sua estrutura elitista e só mantiveram as cidades onde o poder era mais compartilhado”, diz Mann.
Culturas pueblo
Entre o que hoje é o sudoeste dos Estados Unidos e o noroeste do México havia mais de 20 comunidades com idiomas e etnias diferentes, mas com uma cultura e religião em comum.
Os espanhóis as chamaram de pueblos (vilarejos), mas algumas das comunidades eram tão grandes que os primeiros relatos escritos se referiam a elas como “reinos” e diziam que “se estendiam até onde a vista alcançava”.
É o caso de Zuni e Acoma, esta última uma cidade impressionante construída sobre um platô no atual Estado do Novo México, nos EUA.
“Algumas cidades eram maiores do que outras, mas não havia uma dominante. Temos evidências de que em tempos de seca ou de fome as comunidades se deslocavam de uma cidade a outra e eram abrigadas pelos vizinhos, às vezes por anos, até que as condições melhorassem na sua área. As culturas aprendiam umas com as outras e as comunidades eram multinacionais”, explica à BBC News Brasil Kurtz Anschuetz.
Os pueblanos também eram agrônomos e agricultores talentosos, segundo Anschuetz.
Desenvolveram variedades de milho e tecnologias para poder cultivá-las em diferentes tipos de solo, em campos espalhados por todo o território. Isso garantia que teriam alimento suficiente para todo o ano, reservas para compensar colheitas ruins e também o necessário para cumprir seus rituais religiosos.
Mas, mesmo que não houvesse na Europa naquela época uma agricultura tão sofisticada em grande escala, a técnica e a eficiência dos nativos não impressionou os colonizadores.
“Os europeus estavam buscando riquezas minerais e almas para catequizar. Eles diziam que o solo americano era tão fértil que as pessoas não tinham que fazer nada, só semear e colher. Mas não era assim”, diz Anschuetz.
MESOAMÉRICA
Estabelecidos em cidades monumentais e organizados em grandes impérios ou em pequenos estados independentes, os mesoamericanos se pareciam mais com o que os europeus identificavam como “civilizações”.
Quando eles chegaram, cerca de 24 milhões de pessoas, de acordo com as estimativas mais recentes, viviam no coração da América.
Essa região foi berço de inovações e avanços tecnológicos importantes, o que fez com que suas grandes e populosas cidades, em muitos aspectos, funcionassem melhor do que as europeias.
Os povos nativos desviavam o curso natural de rios, construíam enormes lagos impermeáveis e plantavam dentro de balsas flutuantes. Extraíam borracha das árvores para jogar bola e, ao contrário do que acreditavam os espanhóis, conheciam muito bem a roda, apesar de não a utilizarem porque era inútil em seus terrenos irregulares e sem animais de carga.
Os maias estão entre os poucos povos da humanidade, e são o único em todo o continente, a desenvolver a escrita de forma independente. Mas isso não impediu que outras culturas mesoamericanas registrassem seu profundo conhecimento de astronomia, matemática e uma elaborada poesia oral.
Império mexica
No final do século 15, o império mexica (que mais tarde muitos historiadores chamariam de asteca) estava em seu auge.
As cidades-estado de Tenochtitlán, Texcoco e Tacuba tinham formado uma poderosa aliança político-militar que tomou o poder dos tepanecas e conquistou a maior parte do centro e do sul do que hoje é o México.
Os mexicas não necessariamente tinham presença militar nos territórios conquistados, mas obrigavam seus novos súditos a enviar produtos e soldados a Tenochtitlán, a sede do império, como tributo.
Também se casavam com as filhas dos chefes locais para que seus herdeiros, educados na capital, comandassem as regiões no futuro.
Tudo isso lhes permitia manter um império hegemônico, mesmo que dentro dele se falassem muitos idiomas além do oficial, o náuatle.
“Em muitos sentidos, não era um sistema tão diferente do que se via na Europa nessa mesma época”, disse à BBC News Brasil a etnóloga Antje Gunsenheimer, da Universidade de Bonn, na Alemanha.
Assim como nos reinos europeus, os mexicas exibiam seu poder através da riqueza e do esplendor dos palácios e jardins de Tenochtitlán.
Quando os europeus chegaram, Tenochtitlán era uma cidade maior do que Paris.
Estima-se que ali podem ter vivido cerca de 250 mil pessoas, a maior densidade populacional da América.
"Era uma cidade refinada, com banheiros públicos, mais de 30 palácios que tinham cerâmicas finas e tecidos elegantes. E ficava em meio a mais de 2 mil km² de lagos ricos em peixes, enquanto que a agricultura nos arredores era bastante produtiva e permitia sustentar a população da região”, disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Esteban Mira Caballos, doutor em História da América pela Universidade de Sevilha, na Espanha.
Mas, a capital era, acima de tudo, um triunfo da engenharia sem comparação.
Um sofisticado sistema de canais e represas construídos ao longo do tempo permitia regular a quantidade de água que chegava a Tenochtitlán das montanhas, por meio dos lagos. Dessa forma, evitava-se a inundação muito frequente da cidade em períodos de chuva intensa e se garantia o fornecimento de água doce para a população.
“Os mexicas viviam num ambiente que parecia muito abundante, mas que era muito frágil e tinha que ser muito bem administrado. E eles faziam isso perfeitamente. Entendiam que, com tanta gente em uma só cidade, o risco de contaminação dos lagos era alto. Sabemos hoje que eles tinham profissionais que coletavam os excrementos e os levaram para a terra firme para que fossem usados como adubo orgânico nas plantações, por exemplo. A cidade era muito limpa”, diz Antje Gunsenheimer.
Depois da conquista, os espanhóis destruíram o sistema hidráulico de Tenochtitlán, que se transformou na Cidade do México, e o reconstruíram no estilo europeu. A partir daí, a cidade foi inundada mais vezes durante o século 16 e sofreu graves epidemias de tifo — prova de que o sistema original era melhor do que o implementado pelos conquistadores.
Império tarasco
Os arqui-inimigos dos mexicas são menos conhecidos porque sobraram menos registros da sua sociedade e relatos de como viviam antes do contato com os espanhóis.
No entanto, os tarascos tinham o segundo maior Estado da Mesoamérica quando os europeus pisaram pela primeira vez no continente.
En sua mitologia, os mexicas se referiam aos tarascos como uma das tribos que saíram de sua terra ancestral, Aztlán, mas que não chegaram junto com eles a Tenochtitlán.
“Falar deles nesses termos ajudava os mexicas a justificar sua incapacidade de derrotar os tarascos e expandir sua fronteira até o noroeste. É como se eles dissessem: ‘eles são fortes assim porque são nossos parentes, é por isso que não conseguimos vencê-los’”, disse à BBC News Brasil Sarah Albiez-Wieck, da Universidade de Colônia, na Alemanha.
No final do século 15, a capital tarasca, Tzintzuntzan, tinha quase 30 mil habitantes e era parte de um centro de poder formado por três cidades-estado próximas a um lago, assim como no império mexica. Mas, nesse caso, os especialistas acreditam que o poder estava menos concentrado em uma só cidade.
Tzintzuntzan era a capital administrativa e tinha um grande centro religioso com edifícios e pirâmides de estrutura mista, retangular e circular, chamadas de yácatas. Nessas construções viviam os sacerdotes, se realizavam sacrifícios rituais e se acendiam fogueiras como sinal de que o império entraria em guerra.
Em relatos dos mexicas e dos espanhóis, os tarascos também aparecem como respeitados metalúrgicos.
“O oeste do México foi o berço da metalurgía na Mesoamérica, e os tarascos são parte dessa tradição, que é anterior a eles. Mas eles foram os primeiros a organizar a extração e o trabalho com metais em nível estatal”, explica Albiez-Wieck.
Os tarascos conseguiram manter parte do seu poder político por mais tempo do que seus inimigos. Por meio de negociações com os espanhóis após a queda de Tenochtitlán, os líderes tarascos puderam continuar recebendo tributos e tendo subordinados até o início do século 17.
Civilização maia
No século 15, a maioria das grandes cidades maias, com suas pirâmides e monumentos imponentes — hoje atrações turísticas populares — já estavam em decadência. Mas algo revolucionário vinha acontecendo com essa civilização nos últimos séculos.
“Sabemos que o sistema de reis divinos desapareceu mais ou menos no século 9 e não ressurgiu. Então a administração das cidades maias passou a ser mais comunal. No século 15 não acho que chegasse a ser uma democracia, mas certamente mais pessoas participavam das decisões”, disse à BBC News Brasil Nikolai Grube, das universidades de Texas, nos Estados Unidos, e de Bonn, na Alemanha, um dos maiores especialistas em textos maias.
Como na Grécia antiga, o mundo maia sempre foi formado por cidades-estado que competiam e entravam em guerras umas com as outras, apesar de compartilharem a cultura, o idioma e a ideia de que pertenciam a um mesmo povo. Os reis tinham um forte controle sobre as rotas de comércio.
Quando o sistema controlado pela nobreza entrou em colapso, segundo Grube, as pessoas parecem ter aproveitado esse vácuo de poder para ter mais acesso a bens de luxo como as jóias feitas de jade e a cerâmica.
As rotas de intercâmbio com outros povos, agora livres, permitiram que produtos como o ouro e o cobre, entre outros, também chegassem ao mundo maia. “De certa maneira, as pessoas ficaram mais ricas em um mundo mais globalizado”, diz Grube.
Ao mesmo tempo, a arquitetura das cidades ficou mais modesta. Sem reis que organizassem o trabalho em obras gigantescas, chegou ao fim a era dos grandes monumentos e palácios. Os templos, feitos por famílias, passaram a ser menores.
Na península de Yucatán, no atual México, Mayapán foi a maior cidade maia antes da conquista, mas também já tinha sido abandonada quando os espanhóis chegaram. Nojpetén, capital dos Itzá Maia construída sobre um lago, foi tão poderosa que chegou a controlar todo o norte do que hoje é a Guatemala.
Essa mudança política e econômica também não foi a única revolução cultural da qual os maias participaram na América. No fim do século 15, eles já eram os astrônomos mais avançados do continente, baseados em um grande conhecimento matemático. Por causa deles, a humanidade conheceu o símbolo do zero.
“Sabemos que na Mesopotâmia se faziam cálculos com a ideia do zero, mas sem um signo que o representasse. Mas os maias tinham isso e foram os primeiros”, explica Grube.
Apesar de que a ideia do zero já existia, um símbolo para o zero é importante porque facilitava representar números mais longos e, portanto, fazer cálculos muito mais complexos. Dessa forma, os maias desenvolveram um sistema de calendários que misturava crenças religiosas, o ano solar de 365 dias e outros fenômenos astronômicos como os ciclos de Vênus, da Lua e de outros planetas com enorme precisão.
Foram também os maias os únicos no continente — e um dos quatro povos da humanidade — a desenvolver a escrita de maneira independente.
O sistema de escrita maia era semelhante aos hieróglifos egípcios e permitia escrever todas as palavras de seu idioma. Hoje, no entanto, só quatro livros maias foram preservados, com textos cerimoniais e de astronomia, já que o resto foi perdido durante e depois das batalhas contra os espanhóis.
Por outro lado, o fato de que não terem um governo unificado também deu à civilização maia uma vantagem sobre os invasores — eles nunca foram completamente conquistados.
“A península de Yucatán e as regiões montanhosas da Guatemala estavam divididas em muitos Estados pequenos liderados por grupos ou por senhores. Apesar de alguns terem se unido aos espanhóis, grande parte não foi submetida ao controle do império colonial nem das autoridades mexicanas até pelo menos o início do século 20”, diz Nikolai Grube.
AMÉRICA DO SUL
Em 1492, a América do Sul abrigava cerca de 25 milhões de pessoas, organizadas em muitos povos extremamente diferentes.
Desde os grandes impérios andinos como o chimú e o inca até os povos do sul conhecidos por resistir à conquista e desenhar a fronteira do império espanhol.
As sociedades pré-colombianas menos conhecidas da região até hoje são as amazônicas, cujo encontro com os europeus, em muitos casos, não aconteceu até o século 16.
Na verdade, durante muito tempo se pensou que somente grupos pequenos e itinerantes podiam viver em um ambiente tão complexo.
Agora, os pesquisadores acreditam que entre oito e 10 milhões de pessoas viviam na Amazônia, falando cerca de 300 idiomas diferentes e, em sua maioria, estabelecidos em grandes centros.
“Não podemos dizer que eram cidades como as dos incas ou maias. Eram espaços com valor político e religioso, que eram ocupados habitualmente, se misturavam com a floresta e estavam hiperconectados por um sistema de estradas”, disse à BBC News Brasil Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
A floresta amazônica também não era completamente virgem quando os europeus chegaram, como se pensou durante muito tempo. Esses povos a transformaram, plantaram nela e a tornaram mais resistente a eventos climáticos.
A costa atlântica do continente, por sua vez, também abrigava uma variedade enorme de povos como os tupinambás, os guaranis e os charrúa, mas o colonialismo e a fundação das cidades apagaram grande parte das evidências materiais de suas vidas pré-colombianas.
AMÉRICA DO SUL
Império inca
No final do século 15, o império inca havia se tornado o maior do mundo — uma expansão só comparável com a do império romano.
Sua capital, Cusco, foi redesenhada pelo líder expansionista Pachacuti para ter a forma de um puma, um dos principais animais sagrados nos Andes.
No lugar onde estariam os órgãos genitais do animal ficava o Coricancha, ou templo do Sol, o mais importante do império.
“Era o Vaticano dos Andes”, disse à BBC News Brasil Sonia Alconini, da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos.
O império abarcava cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados, do norte do atual Equador até a região central do Chile, e estava dividido em quatro grandes partes, cada uma com suas províncias.
Tudo isso era conectado por um sistema viário de pedra, bem construído e de uma escala que ainda impressiona pesquisadores. “Havia infraestrutura por todos os lados: pontes, escadas para subir as montanhas com lhamas. Muitas dessas estradas continuam sendo usadas”, diz Alconini.
Pelas estradas do império circulavam as conchas do molusco spondylus, muito valorizadas como adornos, penas de aves tropicais, ayahuasca, folhas de coca, pimenta-aji, cobre e madeiras vindas da Amazônia.
O ouro e a prata, que cobriam as paredes de templos em Cusco, tinham uma importância mais ritual do que comercial: o ouro representava o sol e a prata, a lua. Por isso, só quem podia usá-los eram as elites, consideradas divinas.
Para conseguir dominar uma parte tão grande do continente, os incas tiveram que subjugar todos os povos da região, de tribos a Estados mais complexos, e estimulá-los a trabalhar em obras de infraestrutura — que não incluíam só as estradas, mas também templos, fortalezas e palácios.
Sem moeda e sem mercado, que mecanismos econômicos tornaram um império tão extenso viável?
A resposta, segundo Alconini, tem a ver com a sofisticada administração e distribuição de recursos feitas pelos incas, mas também com suas estratégias de soft power.
“Quando os incas chegavam a um centro ritual importante, como o oráculo de Pachacamac, construíam ali outros templos e incorporavam aquela divindade a seu panteão imperial. Levavam sua estátua a Cusco e a colocavam no Coricancha. Imagine o efeito que isso tinha nas comunidades”, explica.
Ao mesmo tempo, um dos aspectos mais importantes da conquista inca era a organização da economia da nova província. Para isso, eles faziam um censo dos recursos locais e de todas as pessoas, segundo idade e gênero, algo que permitia determinar o tributo que cada um tinha que pagar ao Estado — em forma de trabalho.
Na capital havia bibliotecas de quipus que guardavam não só os dados administrativos de todo o império, mas também as linhagens das famílias reais — os diferentes tipos de informação eram organizados segundo o tipo de nó, sua posição, grossura, cor ou da extensão do quipu.
Uma vez feito o censo de uma nova província, todos os recursos disponíveis e produzidos ali a partir daquele momento eram divididos em três partes: um terço para o Estado, outro para o soberano e a família imperial e o último para as próprias comunidades.
Era o sistema chamado de mita.
O terço dedicado ao Estado funcionava como garantia de segurança para a população, já que em períodos de seca, por exemplo, a ajuda vinha daí.
Esse sistema também foi essencial para manter as obras e o movimento de soldados por toda a rede de caminhos do império. O Estado colocava comida, tecidos e sandálias nas callancas — armazéns construídos nas estradas em intervalos de um dia de caminhada — para que os soldados, e outros funcionários, pudessem viajar sem tanto peso.
Em algumas regiões, as escavações arqueológicas sugerem que a conquista inca e seu sistema de redistribuição serviu para nivelar as condições de vida das elites e dos cidadãos comuns, segundo Alconini.
No entanto, isso não quer dizer que todos os povos aceitavam e gostavam de ser dominados pelos incas, que exigiam, entre outras coisas, que se falasse o quechua, idioma do império. Caso colaborassem, as comunidades recebiam terras melhores como compensação. Caso se rebelassem, eram transportadas, integralmente, a outras áreas.
“Os incas levaram gente da região do Equador para a Bolívia. O mesmo aconteceu no Chile. Isso mostra a capacidade enorme que eles tinham de mover, organizar e planejar a sociedade”, diz Sonia Alconini.
A mão de obra dos povos conquistados também serviu para expandir a fronteira agrícola do império. Graças à técnica dos terraços de cultivo, construídos nas montanhas andinas, conseguiram plantar milho e batatas, entre outros.
Esse sistema permitiu a expansão sem precedentes dos incas, mas não impediu as crises políticas provocadas pela sucessão de seus líderes. Uma delas causou a divisão que culminou na derrota do império para os espanhóis.
Império chimú
Até aproximadamente os anos 1470, o império chimú — que se estendia por cerca de 500 km desde o sul do atual Equador até a costa norte do Peru, talvez até Lima, segundo alguns pesquisadores — era um dos mais poderosos dos Andes.
Chan Chan, sua capital, era uma das maiores e mais esplêndidas cidades em toda a América.
“Ela foi tão grande quanto Tenochtitlán ou até maior. Chan Chan tinha 24 km² de construção e se estima que em seu apogeu viveram entre 25 mil e 50 mil pessoas. Mas se contarmos todas as comunidades-satélite, facilmente poderíamos chegar a 100 mil habitantes”, disse à BBC News Brasil Gabriel Prieto, da Universidade da Flórida, nos EUA.
Dentro da cidade ficavam os enormes palácios reais, alguns com até 150 hectares de extensão e paredes de barro de 15 metros de altura. Um sistema de praças em ordem descendente dava acesso à parte mais íntima dos palácios, para enfatizar que nem todo mundo tinha acesso aos espaços da elite.
Os edifícios eram decorados com motivos marinhos porque, para os chimú, o mar não era apenas a principal via de intercâmbio com outros povos da costa andina, mas também seu lugar mitológico de origem.
Mas, apesar de se considerarem gente do mar, o principal investimento dos chimú aconteceu em terra.
O império construiu um sistema de irrigação de zonas desérticas com canais feitos de pedra e barro que são considerados um exemplo do alcance da engenharia pré-colombiana.
“Essas pessoas conseguiram, sem ferramentas que hoje são básicas para a engenharia civil, manter uma variação de nível em seus canais de menos de um metro por cada quilômetro, algo essencial para que um sistema como esses funcione bem”, explica Gabriel Prieto.
A capital foi construída em um vale artificial criado a partir desse sistema: um canal principal trazia água de um rio a 80 km de distância, enquanto outros canais traziam água das montanhas. Hoje, essa região voltou a ser desértica.
Nas áreas residenciais de Chan Chan foram encontrados vestígios de muitas oficinas de tecelagem, cerâmica e metalurgia. Essa última foi um dos grandes legados dos chimú à região, já que foi a primeira vez que o metal passou a ser utilizado em larga escala pelas pessoas comuns, não apenas pelas elites, nos Andes.
“Eles eram basicamente uma máquina industrial de processar objetos de metal, especialmente de cobre e bronze arsênico (liga de cobre e bronze que pode ocorrer naturalmente ou ser produzida)”, diz o arqueólogo.
Para os chimú, o ouro e a prata representavam a dualidade complementar do mundo. Por isso, eram abundantes em seus palácios e mausoléus, onde os senhores mais poderosos eram enterrados com adornos extravagantes.
A ourivesaria chimú tinha tanto prestígio que os incas adotaram seu estilo e os espanhóis contabilizaram quantidades impressionantes de metais preciosos nas ruínas de suas cidades após a conquista.
O império perdeu força poucos anos antes da chegada dos europeus, quando entrou em um conflito definitivo com os incas, segundo os pesquisadores.
“Essa briga definiu o futuro da região andina porque os incas nunca tinham enfrentado uma organização política tão poderosa quanto os chimú, mas esses últimos não tinham o aparato militar que os incas tinham. No fim, os incas venceram e conquistaram todo o território norte”, diz Gabriel Prieto.
Povos amazônicos
Culturas dos Llanos de Moxos
Na atual Bolívia, arqueólogos encontraram indícios de uma cultura que desafia tudo o que se pensava sobre as pessoas que viviam na Amazônia até 1492.
“Nessa região havia muitas obras monumentais, algo que não se espera nem se diz da Amazônia. Sempre esperamos encontrar monumentos de pedra, mas, aqui, a monumentalidade é de terra”, disse à BBC News Brasil Carla Jaimes Betancourt, da Universidade de Bonn, na Alemanha.
São estruturas arquitetônicas diferentes que pertenciam aos povos da área de planícies e floresta úmida dos Llanos de Moxos, na atual província do Beni.
Esses povos são chamados coletivamente de “cultura casarabe” ou “cultura hidráulica das lomas”.
As lomas em questão são o principal tipo de estruturas encontrado na região — montículos em forma de pirâmide que chegavam a medir até 20 metros de altura e eram conectados por canais e aterros. Eles eram usados em residências, cemitérios, áreas de cultivo e, os maiores, como centros cerimoniais ou casas para a elite.
Na foz do rio Madeira foi encontrada uma rede de 500 lomas. Estima-se que, em todo o Beni, chegaram a ser construídos até 20 mil desses montículos no total.
“Aparentemente essas pessoas marcavam a paisagem para mostrar hegemonia política e religiosa. Alguns sítios são maiores e se conectam com montículos menores, o que nos faz pensar que havia áreas de influência, como uma capital e seus satélites”, diz Betancourt.
Outras estruturas que nos mostram como viviam os povos nos Llanos de Moxos são as plataformas elevadas de cultivo de vários tamanhos encontradas no local — algumas de até 30 metros de largura e centenas de metros de comprimento, onde se plantava milho, mandioca, pimenta e abóboras.
Perto da atual fronteira com o Brasil estão os vestígios de outra sociedade, especializada na construção de valas que formavam geoglifos. No entanto, não eram simplesmente desenhos no solo. Eles serviam como trincheiras de três a quatro metros de profundidade que protegiam as aldeias, mas ainda não se sabem do que, nem de quem.
“São aldeias que impressionam pelo seu tamanho. Encontramos valas circulares delimitando áreas gigantescas, de 240 hectares. E havia uma aldeia ao lado da outra, separadas por um sistema de valas (…). Como na região viviam povos diferentes é possível que houvesse tensões entre eles, mas não sabemos exatamente que fenômenos aconteciam ali”, afirma a arqueóloga.
Mas o mais importante é que criar todas essas estruturas requeria muita mão de obra, o que mostra que as sociedades do Beni eram mais complexas e muito maiores do que se imaginava.
“Para realizar essas construções era necessário uma organização social e política estável e muita gente. Estimamos que hoje em dia a população do departamento do Beni (cerca de 500 mil pessoas) seja cerca de 20% do que era antes da chegada dos europeus)”, diz Carla Betancourt.
E, apesar da grande quantidade de pessoas vivendo e mudando a paisagem local durante milhares de anos, o legado das culturas pré-colombianas foi um território rico em biodiversidade. “Comparado com o que estamos fazendo hoje com a Amazônia, com o desmatamento e a monocultura agrícola, o que eles fizeram é impressionante”, conclui.
Povos amazônicos
Povo do Xingu
O complexo de Kuhikugu é um dos sítios arqueológicos mais importantes e reveladores da Amazônia.
São 20 aldeias espalhadas em uma área de cerca de 20 mil km² na região do Alto do Xingu, no Centro-Oeste brasileiro, descobertas por Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, com a colaboração de profissionais brasileiros e indígenas locais.
Elas provavelmente foram construídas pelos antepassados do povo kuikuro, que atualmente vive na região.
“Onde hoje há uma aldeia kuikuro havia 20 há 500 anos, e a maior de todas era cerca de 15 a 20 vezes maior do que a atual. Estimamos que cerca de 50 mil pessoas viviam nesse complexo em 1491”, disse o arqueólogo à BBC News Brasil.
O mais surpreendente para os pesquisadores, no entanto, foi a organização da área.
Kuhikugu, uma das maiores, tem um centro de mais de 50 hectares, possivelmente destinado a cerimônias, mas também a algumas residências, com uma enorme praça e rodeado por trincheiras.
Outros sítios residenciais parecidos ficam dispostos em seus arredores: dois assentamentos grandes 5 km ao norte e ao sul e alguns menores à leste e à oeste. Entre todas estas aldeias, e em direção a outras próximas, havia um sistema de estradas com até 50 metros de largura, quatro pistas e até calçadas.
“Acreditamos que toda a região do Xingu estava conectada por esta rede. Algo assim não existia nem na Grécia antiga, nem na Europa medieval, onde havia grandes cidades, mas elas não estavam conectadas a outras comunidades de maneira tão precisa”, afirma Heckenberger.
O que foi encontrado na Amazônia brasileira, afirma Heckenberger, é um tipo de urbanismo diferente e único no mundo.
“Os indígenas descobriram há 800 anos que a natureza poderia ser incorporada às cidades. As áreas de ocupação humana se misturavam e se alternavam com a floresta, os pomares e as plantações.”
Durante muitos anos os pesquisadores assumiram que no interior da floresta amazônica pré-colombiana os povos eram nômades e caçadores-coletores, mas descobertas como a de Kuhikugu mostram que ainda há muito por entender.
“As pessoas não perceberam que esses sistemas complexos existiam na Amazônia porque a expectativa era encontrar algo como uma grande cidade maia. Mas o fato de que isso não exista não quer dizer que a população não estivesse em um processo de urbanização, que não estivessem se organizando e administrando os recursos naturais de maneira sofisticada”, diz Heckenberger.
“Kuhikugu tem uma trincheira dupla ao seu redor que se estende por dois quilômetros, tem 15 metros de largura e cinco metros de profundidade. Eram construções enormes. Seria mais óbvio para nós se fosse uma pirâmide, mas uma vala como esta requeria a mesma mobilização de mão de obra.”
O trabalho daquela sociedade também se destinava a modificar a floresta: segundo estudos recentes, os indígenas praticavam uma forma de agroflorestação, escolhendo a forma e os locais mais convenientes para que determinadas espécies de plantas crescessem.
Nos últimos anos, novas escavações mostravam que havia sociedades complexas, densas e estabelecidas como a do Xingu nas principais bacias de rios amazônicos, segundo Heckenberger.
“Através dessas estradas, os povos de toda a bacia amazônica provavelmente se conectavam uns aos outros. Não vemos mais isso hoje porque o colonialismo jogou uma bomba nuclear em toda a sociedade que existia ali.”
Povos amazônicos
Aisuaris
Décadas depois da chegada dos europeus à América, muitos povos da Amazônia central permaneciam sem contato e, em alguns casos, protegidos das doenças que já atingiam outras comunidades do continente.
É o que parece ter acontecido com os aisuaris.
De acordo com os relatos dos primeiros padres espanhóis que entraram em contato com eles (Gaspar de Carvajal em 1540 e Cristóbal de Acuña em 1639), esse povo vivia em uma região densamente povoada — com pelo menos 30 aldeias só da sua cultura, sem contar os povos vizinhos — nas margens do rio Amazonas, perto da atual cidade de Tefé (AM).
Os religiosos descreveram os nativos como povos compostos de milhares de guerreiros, com “caminhos bons e largos que saíam para as aldeias do interior” e que criavam animais como o tracajá (uma espécie de cágado).
Durante muito tempo acreditou-se que essas descrições eram exageradas, mas, nos últimos anos, arqueólogos brasileiros começaram a comprovar que, na verdade, elas se aproximavam da realidade.
“Os relatos diziam que os aisuaris tinham aldeias lineares nas barrancas dos rios. Nós encontramos sítios assim, de até um quilômetro de extensão, em um assentamento que ocupava um total de 18 hectares. E este lugar estava bastante degradado pela ação do tempo e do ambiente, o que nos faz pensar que a aldeia original devia ser muito maior”, disse à BBC News Brasil Rafael Lopes, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Segundo Lopes, o antropólogo brasileiro Antonio Porro, especialista nos povos da Amazônia central, estima que a comunidade aisuari pode ter tido até 60 mil pessoas no final do século 15.
Os vestígios arqueológicos também parecem confirmar que os nativos domesticavam tracajás, algo que, novamente, desmonta a ideia de que as civilizações da região eram apenas caçadoras e coletoras.
“Isso garantia que eles teriam proteína em sua dieta, mas é importante mencionar que, ainda que tivessem muitas bocas para alimentar, separavam uma quantidade de tartarugas e liberavam o resto. Isso é fazer uma boa gestão de recursos naturais”, diz Eduardo Neves, do MAE-USP.
Outra prova dessa gestão está na própria floresta. Em 2019, o Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá, do qual Rafael Lopes faz parte, descobriu um castanhal de 400 a 500 anos de idade próximo a um sítio arqueológico na região. As árvores chegavam a quase exatos 500 metros da margem do rio. “Isso mostra que houve um trabalho humano para plantar e manter isso aqui”, diz o arqueólogo.
Segundo os relatos dos padres espanhóis, a cada 15 km nas estradas aisuaris havia abrigos rodeados de plantações para abastecer as pessoas que saíam em expedições comerciais a outras aldeias — um conceito semelhante ao das callancas dos incas. Esses detalhes, no entanto, ainda não foram confirmados.
Os aisuaris eram famosos na região pelo intercâmbio de peixe seco e de cerâmica, e recebiam principalmente adornos de ouro. As cerâmicas encontradas na região, diz Lopes, parecem confirmar que os nativos pertenciam a uma rica malha de intercâmbio comercial e cultural.
As mesmas pessoas também nos permitem saber algo sobre a sua visão de mundo e conexão com o território. Um exemplo são as urnas funerárias dos séculos 14 a 16 encontradas pela equipe de Lopes em um sítio da região, que demonstram a existência de um ritual religioso complexo e importante.
O fato de serem pequenas, de no máximo um metro de altura, mostra que nem todo o corpo de uma pessoa era enterrado. Em geral, enterrava-se o corpo no solo primeiro, esperava-se sua decomposição e os ossos eram depois retirados da terra e colocados nas urnas, às vezes junto a ossos de animais, para serem enterrados novamente.
No final do século 17, o missionário jesuíta Samuel Fritz disse que encontrou somente poucas aldeias aisuaris onde antes havia dezenas. Como muitos povos da região, eles teriam sofrido um enorme declínio populacional após o contato com os colonizadores.
Povos amazônicos
Cultura santarém
As margens do Amazonas no extremo norte brasileiro, onde fica a atual cidade de Santarém (PA), foram o lar de uma civilização pré-colombiana cuja arte era tão valorizada que suas peças chegaram até o Caribe pelas redes de intercâmbio da região.
A cultura Santarém, como é chamada pelos pesquisadores, viveu seu apogeu entre os anos 1200 e 1400.
Seu centro era uma grande cidade de pelo menos 400 hectares com seções semelhantes a bairros, fileiras de casas ordenadas e construídas sobre montículos, na região onde fica a atual cidade de Santarém, no Pará.
Ali foram encontrados exemplares de um tipo de cerâmica e de adornos únicos nas Américas: entre eles, vasos e urnas, esculturas antropomórficas (especialmente de mulheres), pontas de lança e “muiraquitãs” — amuletos em forma de rã ou de outros animais, esculpidos em amazonita, usados como colares e que se espalharam por muitas regiões da Amazônia.
A cultura Santarém também tinha um “culto de cremação”.
“Eles mumificavam os corpos, os guardavam, vestiam e saíam com eles na rua. Eles eram considerados seres vivos, como no caso dos incas. Mas as múmias se deterioravam. Por isso, a cremação era provavelmente a etapa final. As cinzas eram colocadas em vasilhas especiais e possivelmente diluídas em um tipo de chá, que as pessoas bebiam”, explica à BBC Brasil Anna Roosevelt, da Universidade de Illinois em Chicago (EUA), que escavou sítios em Santarém.
“É um ritual comum na Amazônia e significa reverência. Você está bebendo a alma, o poder e o status da pessoa.”
Essas cinzas, junto aos restos orgânicos das festas fúnebres, tiveram também um papel vital na fertilidade do solo amazônico. Juntos, eles produziam uma “terra preta”, que os indígenas transportavam para locais de cultivo.
“Basicamente era lixo orgânico que se transformava em adubo. Eles não o produziam especificamente para isso, mas era uma forma de usar esses resíduos, que deviam ser abundantes porque as populações eram grandes”, afirma Roosevelt.
A terra preta é hoje uma das principais pistas encontradas em sítios arqueológicos que indica que, ao contrário do que se pensava, a Amazônia era bastante povoada.
Os primeiros europeus a chegar na região de Santarém, em 1542, foram padres que tiveram contato com o povo tapajó, que foi extinto tempos depois do encontro com os colonizadores.
Apesar de não haver, segundo Roosevelt, evidência arqueológica definitiva de que os tapajós eram parte da cultura Santarém, ela acredita que eles possam ter sido seus descendentes.
“A continuidade das culturas dos povos amazônicos é impressionante. A maioria delas continua viva até hoje, apesar da colonização e da perda de território. Há povos que mantêm os mesmos símbolos, cerimônias e arte dos que viviam na região há milhares de anos”, afirma.
Mapuches
No início dos anos 1540, quando os espanhóis chegaram ao centro-sul do que hoje são Chile e Argentina, perto da Patagônia, encontraram uma organização social tão bem estruturada que nunca conseguiram dominá-la.
Tanto é assim que os mapuches resistiram com sucesso à conquista mais do que qualquer outro povo da América.
Os nativos daquela região foram os únicos com quem a Espanha teve que assinar um acordo de paz, garantindo que respeitaria os limites de seu território. Antes disso, os mapuches já tinham enfrentado os incas numa guerra sangrenta e perderam parte de suas terras no norte do Chile, mas impediram o avanço do império. Tudo isso sem um governo central.
“Os espanhóis estimaram o número de mapuches com base nas batalhas que tiveram com eles. Hoje sabemos que houve exageros, mas calculamos que havia provavelmente entre 1,2 e 1,3 milhão de pessoas no território deles na época”, disse à BBC News Brasil Tom Dillehay, da Universidade Vanderbilt, nos EUA e da Universidade Austral do Chile.
Os povos mapuches eram comunidades confederadas, semelhantes a muitos dos nativos da América do Norte, unidos ideologicamente, culturalmente e para fins militares.
Mas há aspectos únicos da organização mapuche que, segundo Dillehay, foram essenciais para que eles pudessem resistir aos espanhóis por tanto tempo.
“Eles se organizavam em uma estrutura de parentesco que eu chamo de ‘telescópica’. Os grupos familiares relacionados a um antepassado masculino comum formavam um lof e esses lofs se uniam, em tempos de guerra, em outros grupos sob o comando de chefes militares chamados toquis. Regiões diferentes mandavam seus toquis a cerimônias públicas para que eles entrassem em acordo sobre estratégias para enfrentar os invasores”, explica.
Em épocas de conflito, as aldeias mapuches se especializavam de acordo com as necessidades do povo: algumas se responsabilizavam pela comida, outros por receber famílias desalojadas, outros por fornecer guerreiros, etc.
“Outra vantagem que eles tinham era a utilização de táticas de guerrilha. Atacavam em grupos pequenos e em áreas planejadas, de onde podiam sair rapidamente. A guerra móvel era seu ponto forte”, diz o arqueólogo.
A resistência dos mapuche teve sucesso até o século 19, quando os militares chilenos conseguiram conquistar seu território e submetê-los às autoridades do país. Hoje em dia, descendentes desse povo continuam mobilizados politicamente, especialmente no Chile.
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