O que aconteceu no 'genocídio esquecido' da Alemanha na Namíbia, reconhecido após mais de um século -Tim Whewell* BBC News, Namibia - 29 maio 2021
Não vai ser fácil curar as feridas profundas e antigas deixadas pela Alemanha na Namíbia, após o que agora é reconhecido como um genocídio perpetrado por forças coloniais.
Na sexta-feira (28), após mais de 100 anos, Berlim reconheceu oficialmente as atrocidades que cometeu durante a ocupação colonial da Namíbia e ofereceu ao país africano uma quantia em dinheiro como compensação.
Mas como se compensa a destruição de uma sociedade inteira? Que preço colocar?
A Alemanha concordou em pagar mais de 1 bilhão de dólares.
"À luz da responsabilidade histórica e moral da Alemanha, pediremos desculpas à Namíbia e aos descendentes das vítimas", disse o ministro das Relações Exteriores, Heiko Maas, na sexta-feira.Fim do Talvez também te interesse
O governante alemão acrescentou que seu país, em um "gesto de reconhecimento do imenso sofrimento infligido às vítimas", apoiará o desenvolvimento da nação africana através de um programa que vai custar mais de 1,3 bilhões de dólares.
A quantia será paga em 30 anos e investida em infraestrutura, assistência médica e programas de treinamento que beneficiam comunidades afetadas.
Mas alguns líderes namibianos até agora se recusaram a apoiar o acordo, informou o jornal local New Era.
Na Namíbia, descendentes de vítimas e colonos debateram ferozmente sobre o valor financeiro associado ao genocídio.
A colônia alemã no sudoeste africano
"Ao longo de toda essa praia havia um campo de concentração", diz Laidlaw Peringanda, ativista e chefe da Associação sobre o Genocídio da Namíbia. "O arame farpado passava onde hoje está o estacionamento."
O artista e ativista aponta para uma fileira de cafés ao ar livre e um parquinho infantil à beira-mar em Swakopmund, o principal resort costeiro da Namíbia, onde as águas frias do Atlântico batem às margens do deserto do Namibe.
"Minha bisavó contou que alguns membros de nossa família foram trazidos para cá, foram forçados a trabalhar, e morreram."
Ele se refere aos anos 1904-1908, quando a atual Namíbia era uma colônia alemã no sudoeste da África.
Dezenas de milhares de pessoas foram mortas quando as forças coloniais reprimiram brutalmente levantes organizados por dois dos principais povos do país, os herero e os nama, matando a maioria deles e levando os demais para o deserto de Omaheke, no leste do país, onde muitos morreram de fome.
Os sobreviventes acabaram em campos onde foram usados como mão-de-obra escravizada.
Estima-se que cerca de 65.000 dos 80.000 hereros que viviam no sudoeste da África sob o domínio alemão no início do período colonial tenham morrido, bem como em torno de 10.000 de uma população estimada de 20.000 nama.
Se não morriam de fome, morriam de exaustão, sede ou tiros. O estupro de mulheres foi sistemático.
Centenas de crânios de vítimas foram enviadas à Alemanha para estudos sobre diferenças raciais que tentavam identificar uma superioridade dos brancos. Vinte desses crânios foram devolvidos de um hospital em Berlim para a Namíbia em 2011.
As atrocidades cometidas foram descritas por historiadores como o "genocídio esquecido" do início do século XX.
Desde 2015, quando a Alemanha reconheceu formalmente que as atrocidades cometidas ali poderiam ser classificadas como genocídio, o país vinha negociando um acordo de justiça restaurativa com a Namíbia.
Nunca antes uma ex-potência colonial se sentou com uma ex-colônia dessa maneira para chegar a um acordo abrangente sobre o legado do passado.
A Alemanha disse na época que apresentaria um pedido formal de desculpas.
"Qualquer herero, com ou sem armas, será executado"
As potências europeias selaram a divisão da África na conferência de Berlim, em 1884. A Alemanha, que tinha colônias no território atual de Camarões, Togo e Tanzânia, também anexou a costa sudoeste do continente africano, hoje Namíbia.
Lá, a Alemanha expulsou comunidades de suas terras, que foram entregues a colonos alemães. A população nativa foi submetida a todos os tipos de abusos, incluindo estupro e assassinato.
Em 1903, os guerreiros Herero e Nama se rebelaram, lançando ataques que mataram dezenas de colonos.
A Alemanha respondeu implacavelmente.
Em 1904, o imperador alemão, Kaiser Wilhelm II, despachou cerca de 14.000 soldados para a Namíbia sob o comando de Lothar von Trotha, o general que reprimiu brutalmente rebeliões nativas na China e na África Oriental.
Aqueles que sobreviveram a batalhas como a de Waterberg foram mortos ou forçados a entrar no deserto de Kalahari, onde soldados alemães envenenaram poços de água.
A mensagem de Von Trotha aos hereros não deixa margem para dúvidas:
"Eu, general dos soldados alemães, mando esta carta aos Herero. A nação Herero deve deixar o país ... Se recusarem, eu os forçarei com tiros de canhão ... Qualquer Herero, com ou sem armas, será executado."
"Von Trotha disse a seus soldados que eles não perderiam sua honra atirando em mulheres e crianças. Eles atiravam para assustá-los e forçá-los a fugir para o deserto, onde enfrentariam morte certa de sede e fome", Reinhart Koessler, professor do departamento de ciência política na Universidade de Freiburg e acadêmico especializado em memória política, que estudou o passado colonial da Alemanha na África Ocidental por duas décadas.
Para Koessler, as palavras de Von Trotha "eram uma intenção clara de extermínio, e é isso que constitui genocídio, a vontade de eliminar um grupo étnico".
O estupro de mulheres herero e nama foi tão comum que muitos descendentes agora têm ascendência alemã.
"Sou descendente direto dos Ovaherero. Meus avós paternos e maternos tinham sangue alemão nas veias devido ao abuso sexual que os soldados alemães cometeram contra meu povo", disse Ngondi Kamatuka, presidente em exercício da Associação Ovaherero contra o Genocídio no Estados Unidos.
Dinheiro e terras
Por muitos anos, uma das questões mais importantes para os namibianos era como um acordo de compensação material poderia ser alcançado.
Laidlaw Peringanda, como a maioria dos hereros, foi claro: um enorme arranjo financeiro para ajudar a restaurar a prosperidade que ele acredita que seu povo desfrutava então, como criadores de gado, antes do genocídio.
Posteriormente, a maior parte das terras do país foi dividida em fazendas particulares e dadas a colonos alemães.
E hoje a maioria dos herero e nama vivem em áreas pequenas e superlotadas de terras comunais que mais tarde lhes foram atribuídas, ou nas aldeias, "assentamentos informais" ou favelas que abrigam 40% da população da Namíbia.
Em Swakopmund, há um enorme abismo social entre o belo centro da cidade da era colonial, com seus edifícios pintados em tons pastel, lar de muitos netos e bisnetos dos colonos originais, e as favelas construídas com tábuas e placas de metal que se estendem por milhas ao norte do país.
"Eles não têm banheiros, não têm água encanada, não há eletricidade", diz Laidlaw.
"Algumas das pessoas que lá vivem são descendentes das vítimas dos campos de concentração. É realmente injusto o que está acontecendo".
A esperança é que o dinheiro do governo alemão seja usado para financiar um programa de reforma agrária que permitirá que as fazendas de agricultores alemães da Namíbia sejam compradas e distribuídas entre os herero e nama.
Acredita-se que os namibianos alemães sejam o maior grupo entre os fazendeiros brancos, que possuem cerca de 70% das terras agrícolas do país, e algumas de suas propriedades são vastas - uma só delas, por exemplo, cobre mais de mil quilômetros quadrados.
O principal negociador da Namíbia, Embaixador Zed Ngavirue, disse antes do anúncio do acordo na sexta-feira que a Alemanha "reconheceu que precisa fazer algo para nos ajudar a reconstruir nossa sociedade" e concordou em fornecer dinheiro, como parte de um acordo mais amplo, para compra de terrenos de donos que estejam dispostos a fazê-lo.
Mas ele acrescenta: "Não quero me enganar achando que a Alemanha vai resolver o problema da terra. Não estamos apenas falando sobre a perda de terras como resultado da colonização alemã."
Depois que a Alemanha perdeu sua colônia na Primeira Guerra Mundial, muitos outros colonos chegaram, e o Sudoeste da África foi governado pela África do Sul por 70 anos.
Desde a independência em 1990, tanto negros namibianos quanto estrangeiros compraram terras no país.
Há alguns meses, Laidlaw garantiu que a Alemanha deveria falar não só com o governo da Namíbia, mas também diretamente com os líderes herero e nama, como o chefe dos hereros, Vekuii Rukoro, que tentou processar Berlim por indenização em tribunais dos Estados Unidos, mas até agora não teve sucesso.
O temor é que parte dos benefícios de um acordo governamental possa para comunidades que nunca sofreram com o genocídio, como os Ovambo, hoje o maior grupo étnico da Namíbia.
Assessor de Rukoro, Festus Mundjuua disse que o governo quer "colocar as mãos no dinheiro porque tem seus próprios projetos para os quais não têm verbas".
O governo nega e afirma que os recursos serão administrados pelas comunidades afetadas.
Ceticismo
Mas não são só os descendentes das vítimas que permanecem céticos em relação às negociações.
O mesmo aconteceu com alguns dos cerca de 30.000 homens e mulheres que falam alemão e ficaram na Namíbia: os descendentes de colonos.
"O mito do genocídio nada mais é do que chantagem moral", disse o historiador Andreas Vogt.
Como muitos teuto-namibianos, Vogt afirma que a infame "ordem de extermínio" assinada pelo comandante das forças coloniais, General Lothar von Trotha, em 1904, que afirmava que "qualquer herero encontrado dentro da fronteira alemã, com ou sem arma, será executado ", não era política de estado e nunca foi implementada.
"A representação de, por um lado, uma autoridade colonial alemã genocida brutal e implacável e, por outro, o povo herero imaculado e completamente inocente está contaminada. São necessárias duas partes para fazer as coisas acontecerem", disse Vogt.
Ele e outros namibianos alemães apontam que os herero se rebelaram contra o domínio alemão em 1904, matando cerca de 120 colonos alemães, mas foram posteriormente derrotados na batalha decisiva de Waterberg.
No ano passado, Anton von Wietersheim, um teuto-namibiano que serviu como ministro do governo logo após a independência, ajudou a lançar uma iniciativa para encorajar os namibianos de língua alemã a discutir o passado, tanto entre eles quanto em conjunto com representantes dos herero e nama.
E embora ele planeje realizar uma conferência germano-namibiana, ela foi adiada devido à pandemia covid-19.
"Muitos de nossos compatriotas brancos ainda não perceberam a situação em que essas pessoas afetadas se encontram como resultado de eventos históricos", diz ele.
O acadêmico e ativista germano-namibiano Henning Melber, que estudou os antecedentes das conversações, acredita que outras ex-potências coloniais da Europa expressaram em particular preocupação à Alemanha de que o acordo com a Namíbia gerará uma enxurrada de reivindicações contra vários colonos por parte de nações africanas, do Sudeste Asiático e de outros lugares.
A Tanzânia, sucessora de outra ex-colônia alemã, Tanganica, já está exigindo reparações pelas atrocidades e, potencialmente, outras ex-colônias poderiam fazer o mesmo.
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