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O que está acontecendo com a Cinemateca? - Rafael Argemon - 03/10/2020 - POR: HUFFPOST BRASIL

 Entenda todo o imbróglio entre a entidade que geria a instituição e o governo federal que coloca em risco – de verdade – a memória audiovisual do Brasil.

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Uma das duas salas de exibição da Cinemateca, a Sala BNDES, inaugurada em 2007, é um das mais bem equipadas e modernas da cidade de São Paulo.

Criada em 1956 pelo crítico Paulo Emílio Sales Gomes, aCinemateca Brasileira, a quinta maior de todo o mundo, funciona como a memória audiovisual do País. Instalada em um prédio histórico no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, a instituição detém praticamente todo o acervo do cinema brasileiro, com mais de 250 mil rolos de filmes e um milhão de documentos.

Lá você podia encontrar obras raras (e únicas) do período do cinema mudo brasileiro, telenovelas dos primeiros passos da televisão no Brasil, imagens de jogos de futebol históricos retratados no lendário Canal 100, arquivos completos com toda a filmografia de grandes cineastas, como Glauber Rocha, um dos maiores expoentes do influente movimento do Cinema Novo... Tudo a disposição de qualquer pessoa. Podia... Porque desde o dia 7 de agosto de 2020, a Cinemateca Brasileira está fechada e abandonada à própria sorte. 

“A Cinemateca é o nosso grande arquivo iconográfico do audiovisual, que deveria ser algo intocável. É um absurdo o que está acontecendo”, desabafa a cineasta carioca Sabrina Fidalgo, que já teve alguns de seus filmes, como o premiado curta Rainha (2016), exibido em mostras na Cinemateca. 

Como uma instituição tão importante para a memória de nosso país chegou a esse ponto? 

É claro que a Cinemateca enfrentou diversas crises ao longo de sua história, mas esta, a mais grave de todas, começou em 2018, quando o Ministério da Cultura do governo Michel Temer (MDB) transferiu a administração da instituição à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), uma entidade privada que geria a TV Escola, ligada ao Ministério da Educação.

Essa “parceria” entre pastas distintas abriu um precedente. Foi a partir daí que o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez algo que, por tabela, selou o destino da Cinemateca. Em dezembro de 2019, ele suspendeu o contrato do MEC com a Acerp em relação à TV Escola, decisão que acabou atingindo a Cinemateca, que fazia parte do “pacote” da Roquete Pinto.

No entanto, a Acerp ainda tinha um contrato vigente com a Cinemateca até março de 2021 e cobrava da Secretaria de Cultura – que no governo Bolsonaro perdeu o status de ministério e passou para a pasta do Turismo – R$ 14 milhões de verbas atrasadas.

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Um dos espaços da Cinemateca Brasileira utilizados como arquivo.

Aí veio a pandemia do coronavírus e tudo ficou ainda mais complicado. Sem nem mesmo conseguir utilizar seu espaço para eventos, a Cinemateca começou a definhar. Os funcionários da instituição ficaram boa parte de 2020 sem receber salários e a queda de braço entre a Acerp e o governo federal se acirrou. 

A solução definitiva dada pelo atual secretário de cultura, o ator Mario Frias aconteceu no fatídico 7 de agosto de 2020, quando, em uma manobra “cinematográfica”, o secretário nacional do audiovisual substituto, Helio Ferraz de Oliveira, apareceu na porta da Cinemateca escoltado pela Polícia Federal para pegar as chaves da instituição das mãos de Francisco Câmpera, diretor da Acerp. O passo seguinte foi demitir todos s funcionários da instituição, até aqueles que cuidavam da área mais delicada da Cinemateca: seu arquivo.

Mesmo prometendo que o governo manteria o “compromisso de resguardar a continuidade dos serviços e a segurança do patrimônio cultural preservado pela Cinemateca”, segundo informou a Folha de S. Paulo, a Secretaria de Cultura colocou a memória audiovisual em perigo.

O fato é que todos os rolos de filmes produzidos até a década de 1950 contêm nitrato de celulose, uma substância química altamente inflamável que, se não for mantida em uma certa temperatura constantemente, entra em combustão espontânea. Ou seja, esse material pode simplesmente pegar fogo sozinho.

A coisa é tão séria que o galpão que contém esses rolos fica isolado dos demais justamente para abrigar filmes com potencial inflamável. A estrutura não tem rede elétrica e as paredes não são conectadas com o teto para evitar propagação do fogo. E, mesmo assim, com todo esse cuidado, a Cinemateca já foi alvo de quatro incêndios. O último aconteceu em 2016.

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Área de projeção externa da Cinemateca Brasileira.

No momento, todas as atividades da Cinemateca estão paralisadas. No site cinemateca.org.br, o visitante logo é alertado que a instituição está fechada, mas o único motivo alegado é a pandemia de covid-19.

Em sua coluna publicada no UOL no último domingo (27), o jornalista Ricardo Feltrim denunciou que até a cessão de imagens foi interrompida.

Segundo ele, os pedidos de cineastas, tanto brasileiros quanto estrangeiros, por material guardado na instituição, estão sendo sumariamente ignorados pela Secretaria de Cultura. Sem esse material, muitas produções para cinema, televisão e streaming têm de ser repensadas ou até mesmo paralisadas.

O jornalista afirma também, com base em fontes não identificadas, que a Cinemateca está sendo loteada politicamente, se transformando em um “cabide de emprego” de pessoas que não têm a mínima qualificação para os postos vagos.

Ao deixar o cargo de secretária de Cultura, com menos de 80 dias no posto, a atriz Regina Duarte recebeu a promessa de Bolsonaro de que assumiria a Cinemateca. “Acabo de ganhar um presente, que é o sonho de qualquer pessoa de comunicação, de audiovisual, de cinema, de teatro... Um convite para fazer Cinemateca, que é um braço da cultura, que funciona lá em São Paulo”, disse Regina, na época, em um vídeo ao lado do presidente. 

Ela não chegou a assumir, e, em julho, Mario Frias disse que a atriz teria “lugar de destaque na Cinemateca”. “Existe a possibilidade de criarmos uma secretaria para que ela cuide da Cinemateca. É um pedido do presidente, ele respeita muito ela e eu também. Vamos resolver isso, e assim que esse imbróglio se revolver, a Regina terá o lugar de destaque dela na Cinemateca”, afirmou Frias à rádio Jovem Pan em 27 de julho.

Para Sabrina Fidalgo, o que acontece com a Cinemateca é “uma tragédia de proporções inimagináveis”. “Corremos o risco de perder a nossa memória. Qualquer país minimamente civilizado se importa com sua memória e a preserva. O Brasil é um país desenvolvido, principalmente no que diz respeito à cultura. Mas políticas como essa, do nosso atual governo, causam um subdesenvolvimento cultural inédito. Nunca antes a gente viu tanto descaso com nossa cultura.” 

Por enquanto, nada foi definido publicamente pela Secretaria de Cultura em relação ao futuro da Cinemateca. Tudo o que se fala é que o governo estava tomando as devidas providências para iniciar os editais para a contratação de uma entidade que esteja de acordo com o que a administração Bolsonaro quer para a Cultura.

Na mais recente edição do programa da Rede Globo Papo com Bial, que tratou sobre o assunto na madrugada desta sexta (2), o professor de cinema e ex-diretor da Cinemateca entre 1987 e 1992, Carlos Augusto Calil, disse que há vontade política da Câmara Municipal e prefeitura de São Paulo em conjunto com a Sociedade Amigos da Cinemateca para, pelo menos, minimizar os riscos.

“Neste momento há uma negociação com o governo federal para que a Sociedade Amigos da Cinemateca, que foi criada em 1962, assumisse a gestão da Cinemateca por três meses. Ela recontrataria, com recursos levantados pela câmara municipal e prefeitura de São Paulo, boa parte dos funcionários e administraria a instituição até que o governo federal encontre uma solução”, explicou o professor Calil.

Porém, como ele bem disse, essa é uma possibilidade sem qualquer garantia que se torne realidade. Enquanto isso, a Cinemateca agoniza.

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