Em 11 desenhos, a tragédia de Auschwitz contada por artista que sobreviveu ao horror - Paula Adamo Idoeta - @paulaidoeta Da BBC News Brasil em São Paulo 27 janeiro 2020
"Eu vi algo que nunca tinha acontecido antes neste século. Vivenciei essa tragédia não apenas com meus próprios olhos, como também tenho isso enterrado dentro de mim, na minha memória. Estas são as poderosas imagens que eu vi — e minha intenção sempre foi dar forma a toda aquela miséria e mostrá-la ao mundo."
Essa é uma das descrições feitas pelo artista David Friedman (1893-1980) a respeito de seu amplo trabalho artístico retratando o Holocausto, período de terror que ele vivenciou na pele: como judeu, Friedman foi perseguido pelos nazistas, teve seu trabalho saqueado pelo regime diversas vezes, foi confinado em um gueto e, depois, levado ao campo de concentração de Auschwitz, onde perdeu sua primeira mulher e filha. Holocausto
Agora, sua filha de um segundo casamento encara como missão de vida resgatar as obras de arte do pai que foram perdidas pelo caminho e garantir que o trabalho de Friedman se mantenha vivo na memória coletiva.
"Os nazistas tentaram erradicar todos os traços dele, mas não conseguiram", diz à BBC News Brasil Miriam Friedman Morris, que mora nos EUA e que levou muitos anos reconstruindo o quebra-cabeças da vida do pai.
"(Antes da Segunda Guerra), ele rumava para ser um grande artista em Berlim — é um dos muitos artistas de uma geração perdida cujas carreiras foram interrompidas pelo regime nazista. Como filha, quero resgatá-lo do esquecimento."null.
Friedman nasceu em Mährisch Ostrau, cidade que na época pertencia ao Império Austro-Húngaro e hoje fica na República Tcheca. Mudou-se aos 17 anos para Berlim, na Alemanha, para estudar e trabalhar como pintor. Durante a 1ª Guerra Mundial, pintou retratos de soldados e cenas de combate do Exército austro-húngaro e consolidou-se como retratista, publicando dezenas de obras em jornais e apresentando-as em galerias.
Até que, em 1938, diante do recrudescimento da perseguição a judeus, Friedman pegou sua mulher Mathilde e a filha bebê Mirjam Helene e fugiu para Praga (hoje, também na República Tcheca).
Mas não conseguiu escapar dos nazistas por muito tempo: em 1941, a família foi levada para o gueto de Lodz, na Polônia, e de lá transportada para Auschwitz, em 1944. Foi a última vez que Friedman viu Mathilde e Mirjam. Foram todos separados antes da chegada a Auschwitz, e acredita-se que ambas tenham morrido ali.
Friedman sobreviveu, mudou-se para Israel e depois para os EUA e reinventou-se como artista, além de formar uma nova família. Foi só muito mais tarde que ele dedicou-se a pintar muitas das obras que ilustram esta reportagem — elas retratam diversas etapas do sofrimento, perseguição e incerteza das vítimas e recontam, a seu modo, a história do Holocausto.
No início, depois de serem forçados a entregar seus bens valiosos aos nazistas, os judeus, "crianças e adultos, acompanhados por soldados com baionetas, caminhavam com sua bagagem rumo ao trem, onde milhares de judeus eram confinados como sardinhas", escreveu Friedman sobre a pintura acima, que ilustra sua ida ao gueto (acima).
"Não é necessário descrever o que acontecia dentro de um vagão completamente fechado, durante dois dias e duas noites, e aquilo era apenas o começo."
Miriam Friedman Morris conta à BBC News Brasil que grande parte das pinturas sobre o Holocausto foram feitas pelo seu pai só décadas depois da guerra, nos anos 1960, nos EUA, quando ele já estava aposentado da carreira de artista publicitário à qual se dedicara após se mudar para o território americano.
Miriam lembra que, à época, Friedman ficava chocado com episódios de antissemitismo que ocorriam nos EUA e com marchas de grupos supremacistas brancos como a Klu Klux Klan.
"Depois de se aposentar, ele se voltou para a arte que mais importava", relata Miriam. "Ele não podia mais deixar de lado as pinturas que estavam no seu coração, (da época) do campo de concentração."
David Friedman escreveu na época: "Espero que todos possam ver essa arte para entender como era a perseguição sob o regime nazista. Isso pode acontecer de novo. (...) Vou tentar lançar meus sentimentos sobre telas (de arte) contra o antissemitismo e contra o ódio a qualquer pessoa."
Ao comentar a obra Alguns segundos antes da execução (acima), o artista afirmou: "milhares de judeus na Polônia e na Rússia eram perseguidos porque o regime nazista planejava fazer as cidades e aldeias 'Judenrein'", ou livres da "influência judaica".
A ida para Auschwitz também trazia lembranças duras.
"Este trem de gado irá para Aushchwitz-Birkenau para a aniquilação de todas as pessoas retratadas neste quadro", escreveu Friedman sobre a pintura abaixo. "As condições lá dentro (do vagão) eram terríveis, mal conseguíamos respirar. Três dias sem comer. Nunca vou me esquecer daquela viagem."
O conjunto de campos de concentração é considerado o símbolo mais cruel do Holocausto: estima-se que 1,1 milhão de pessoas (judeus em sua grande maioria) tenham morrido de fome, doenças ou em câmaras de gás ali.
Miriam Friedman Morris conta que teve uma infância feliz nos EUA e que seus pais falavam pouco dos horrores que haviam vivenciado durante os anos sob o regime nazista.
Ambos tinham tatuados nos braços os números que os identificavam nos campos de concentração, mas, uma vez que amigos e vizinhos — também sobreviventes e de origem judaica — tinham tatuagens semelhantes, Miriam enxergava aquilo como parte de sua vida.
"As pessoas falavam pouco sobre o Holocausto naquela época", conta.
Ela tinha cerca de 12 anos quando o pai decidu passar meses pintando algumas das obras reproduzidas aqui. Ele intitulou a série de "Porque eles eram judeus", e deu o mesmo nome para a obra abaixo.
"Às vezes, só por prazer, os nazistas atiravam contra mães judias primeiro e depois contra seus filhos. Não havia fim para a bestialidade dos nazistas", escreveu Friedman a respeito.
Abaixo, a cena de Enterrando um camarada: "Judeus prisioneiros indo enterrar um camarada que havia sido assassinado. Um nazista sorridente fuma enquanto assiste. Dois prisioneiros cavam uma vala. Em geral, os prisioneiros cavavam a própria vala antes de levarem um tiro. Isso era um prazer adicional para os nazistas."
Prisioneiros eram submetidos a humilhações também na alimentação e nos trabalhos forçados.
"Um prato de sopa de repolho, que era como água quente, tinha de dar para dois ou três homens", descreveu o artista. "Depois disso, os nazistas empurravam os prisioneiros com varas e revólveres à sala de banho. Às vezes eles usavam palavras gentis e contavam piadas para facilitar o processo. Mas, uma vez que os prisioneiros entravam, eram empurrados à direita, onde ficava a câmara de gás. Que tipo de inferno é esse?"
Sobre os trabalhos forçados, ele contou que "a cada manhã de domingo tínhamos de carregar 11 quilos de tijolos por quase 5km. Os nazistas gostavam de assistir a nossa tortura, enquanto não tínhamos nada em nossos estômagos. Se algum de nós desmaiasse, eles nos batiam com o cabo dos fuzis até que levantássemos para concluir o trabalho."
Na pintura abaixo, Friedman retrata a si mesmo, como o prisioneiro de óculos:
Friedman, por sinal, se inclui em diversas obras da série de desenhos "Porque eles eram judeus".
Na descrição da pintura abaixo, ele recorda o momento em que um guarda o viu voltando do banheiro em Auschwitz. "Apesar de eu ter dito que tinha permissão (para ir ao banheiro), ele me bateu diversas vezes no rosto."
Já perto do fim da Segunda Guerra, quando o Exército nazista começava a recuar nos fronts de guerra, o regime começou a tirar os prisioneiros de seus campos de concentração.
"Sem querer ceder apesar da derrota visível, os nazistas estavam determinados a impedir que os sobreviventes (dos campos) caíssem nas mãos dos Aliados (seus adversários)", descreve o Yad Vashem, principal centro de memória do período do Holocausto.
Nasciam, aí, as "marchas da morte", nas quais os prisioneiros eram forçados a marchar por longas distâncias, em pleno inverno europeu, sem comida, água ou descanso. Muitos morreram a poucos meses (ou dias) do fim da guerra.
Friedman esteve em uma dessas "marchas da morte", e retratou-se a si mesmo, novamente, como o prisioneiro de óculos na pintura abaixo:
A libertação viria pouco depois, marcando o fim de um calvário mas o início de um período de muita incerteza, sensação que o artista tenta transmitir em sua obra.
"Em 25 de janeiro de 1945, ouvimos tiros e percebemos que os nazistas estavam fugindo", relatou Friedman. "Não conseguíamos acreditar que estávamos livres."
"Eles não sabiam o que ia acontecer com a chegada dos russos (que libertaram Auschwitz)", agrega Miriam. "A obra mostra a perplexidade de estar liberto."
Friedman morreu em 1980, nos EUA, e grande parte de sua obra hoje é parte de coleções permanentes ou itinerantes de museus dedicados à memória do Holocausto em locais como EUA, Israel e Alemanha — um deles, em Nova Jersey, criou uma exposição dedicada a Friedman que está em cartaz e vai até 2 de fevereiro.
Miriam só viria a descobrir boa parte do passado do pai depois da morte dele, quando ela herdou diários escritos por Friedman com suas recordações da Segunda Guerra Mundial. Até então, ela pouco sabia sobre a primeira mulher que ele havia perdido na guerra — e sobre a irmã que morreu ainda bebê nas mãos dos nazistas e em homenagem à qual foi batizada.
"Ele não falava a respeito e eu não perguntava, porque sabia que era muito dolorido para ele", conta Miriam. "Quando li seu diário, descobri o quão pouco eu sabia da vida dele."
Desde então, ela se dedica a resgatar obras antigas do pai que tenham sido saqueadas pelo nazismo e que estavam perdidas em diversas cidades do mundo. Visitou a cidade tcheca onde ele nasceu, foi a Auschwitz e ao local onde ele foi libertado, na Polônia. "Depois de seguir os passos dele, passei a ver sua obra com outros olhos."
"A obra dele sobre o Holocausto é a mais importante, mas sempre me intrigou seu trabalho prévio e quero tentar recontar sua história", conta Miriam.
"É muito gratificante quando posso compartilhar a vida e trabalho dele. Eu sempre soube que ele era um artista especial."
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