'Eu não mudei. O mundo está mudando', diz Mauricio de Sousa sobre minorias na Turma da Mônica, que chega aos cinemas - Rafael Barifouse Da BBC News Brasil em São Paulo - 27 junho 2019
Há pouco mais de uma semana, Mauricio de Sousa assistiu pela terceira vez ao filme Turma da Mônica: Laços. Ainda assim, ele se emocionou como se fosse a primeira.
Ao lado da mulher e dos filhos, o cartunista chorou quando os créditos subiram na tela de um cinema em São Paulo e a sala lotada aplaudiu de pé o primeiro longa-metragem com atores do universo que ele criou, que estreia nesta quinta-feira, 27 de junho.
"Fazer o filme era uma ideia antiga, e ali caiu a minha ficha de que havia realizado esse sonho - e com categoria, do que jeito que eu queria", diz Mauricio à BBC News Brasil.
O longa é baseado na graphic novel Laços, a primeira parte de uma trilogia em quadrinhos escrita e ilustrada pelos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, lançada em 2013. O volume é parte de uma linha mais autoral com personagens da Turma da Mônica.
Na história, o cachorro de Cebolinha (Kevin Vechiatto), Floquinho, desaparece e ele tenta encontrá-lo com a ajuda de Mônica (Giulia Benite), Magali (Laura Rauseo) e Cascão (Gabriel Moreira).Mauricio viu, já naquela época, o potencial daquele trabalho. "Queria fazer um filme, mas não tinha achado uma história que me impressionasse. Quando li o roteiro de Laços, vi que era uma história bonita e com uma trama boa. Falei na hora: 'Isso é um filme'."
Uma produtora procurou o cartunista para adaptar Laços para as telas, e Mauricio sugeriu fazer um longa com atores. "Tinha dúvidas se crianças aguentariam o rojão e teriam a disciplina necessária, até que o Daniel Rezende propôs ser o diretor."
Este é o segundo longa de Rezende, que dirigiu Bingo: O Rei das Manhãs (2017) e se destacou internacionalmente como montador, com uma indicação ao Oscar de melhor edição por Cidade de Deus (2002).
Foram seis meses para escolher as crianças que dariam vida aos protagonistas, entre as 7,5 mil candidatas. O diretor selecionou dois quartetos e pediu a opinião de Maurício e sua equipe antes de fazer a escolha final.
"Os quatro selecionados já eram a Turma da Mônica mesmo antes de serem escolhidos. Eles ficaram muito amigos durante os testes, brincavam, eram alegres, descontraídos, espertos, inteligentes. Pensei: 'Ah, são esses'. E não deu outra. Meu medo de que crianças não conseguissem dar conta foi por água abaixo", diz Mauricio.
Mônica Sousa, filha de Mauricio e inspiração para a personagem que leva seu nome, diz que estava curiosa, mas também um pouco apreensiva antes de assistir ao longa pela primeira vez.
"Eu pensava: 'O que será que eu vou ver? Será que deram conta de transportar esses personagens para o mundo real?'. No fim, foi algo mágico e emocionante. Nunca esperei que isso pudesse acontecer."
Laços é o 19º longa-metragem do estúdio Mauricio de Sousa Produções - os demais filmes foram produzidos desde 1982 e todos em animação, com alguns sendo exibidos nos cinemas. Mas, desde 2007, um filme da Turma da Mônica não entrava em cartaz, o que torna ainda mais importante um trabalho que já tem um significado especial.
"É a perpetuação da família de personagens que meu pai criou", diz Mônica.
Mauricio diz que o filme abre novas portas e caminhos para um negócio que celebra 60 anos de existência neste ano. "Pode significar uma virada da empresa para um esquema diferente de produções. Já estamos discutindo uma continuação."
Novos personagens com necessidades especiais e protagonistas negros
Mauricio iniciou sua carreira como cartunista em 1959 no jornal Folha da Manhã, com uma tirinha sobre o cachorro Bidu e seu dono, Franjinha.
Depois, vieram Cebolinha, Cascão e outros personagens, até seu criador ser questionado sobre a ausência de figuras femininas em seu trabalho. Foi quando surgiu a Mônica, em 1963.
Hoje são 440 personagens, um número que continua a crescer. Muitos dos novos personagens buscam promover a inclusão de crianças com necessidades especiais, como Edu (distrofia muscular), Tati (síndrome de Down), Luca (cadeirante), Dorinha (deficiente visual), Igor e Vitória (soropositivos) e André (autismo).
"Eles têm o papel de divulgar por meio das histórias mensagens que sejam esclarecedoras sobre crianças que têm essas condições. Se pudermos fazer alguma coisa para ajudar, temos de fazer", diz Mauricio.
Outra criação recente foi Milena e sua família - o primeiro núcleo de personagens negros a entrar para o rol de protagonistas. Mauricio já havia criado outros personagens negros, como o Jeremias e Pelezinho, mas faltava um principal, "talvez pela falta de conhecimento sobre os problemas que os negros enfrentam em diversas fases de sua vida", segundo o criador.
"Recebemos várias mensagens de pessoas dizendo que agora estavam se sentindo representadas pela Turma da Mônica. Isso é lindo."
Mauricio afirma que a criação destes personagens envolve um grande trabalho de pesquisa e consulta para não levar para as páginas dos quadrinhos "algum tipo de preconceito que às vezes, sem querer, a gente assimila".
Ele também explica por que personagens que representam minorias e com perfis diferentes não fizeram parte de suas criações no passado.
"Eu me distraí por algum tempo e me esqueci que, na minha turminha de crianças nas ruas de terra de Mogi das Cruzes, onde cresci, tinha amigos portadores de deficiências, de outras etnias. Por que não incluir se isso faz parte da vida de todo mundo? E não vai parar por aqui", diz ele.
Seu filho Mauro Sousa, que é gay, afirma que um personagem com esse perfil também está nos planos. "Estamos conversando há alguns meses sobre isso, mas ainda é algo bem cru e que estamos planejando bastante para entender como seria, de que turma faria parte, como seria divulgado."
Mauricio também é cauteloso e diz que este tipo de personagem ainda não está sendo criado, mas diz que isso "sem dúvida" vai ocorrer em algum momento. "Essa possibilidade depende dos nossos leitores aceitarem numa boa, sem haver nenhum tipo de comoção. Vai ser na hora e no tempo certo", afirma o cartunista.
Em 2015, Maurício disse em entrevista à revista IstoÉ que ainda não era o momento de tratar nos gibis de um tema como a homossexualidade, porque a sociedade não estava pronta para isso. Mudou de ideia?
"Eu não mudei. O mundo está mudando. Veja as marchas que estão acontecendo, com pessoas assim cada vez mais aceitas e compreendidas e participando de uma revolução social", diz Mauricio.
"Não somos nós que estamos criando, é a sociedade. No momento em que o mundo estiver esclarecido para esse tipo de situação, será o momento de botarmos na nossas histórias gays ou transexuais. Estou aguardando essa evolução."
No entanto, ele diz que não se trata de se curvar ao politicamente correto e que isso não deve ser uma preocupação. "Um profissional que trabalha com criação acha uma saída. Se não pode usar uma palavra ou situação por causa do politicamente correto, busca outro caminho. Um criativo não pode se acovardar nem fugir dos desafios. Se a sociedade muda e proíbe ou acha esquisito isso e aquilo, a gente faz de outro jeito."
Um negócio administrado em família
Aos 83 anos, Maurício segue à frente de sua empresa, que hoje tem 350 funcionários e movimenta milhões de reais não apenas com gibis, mas livros, desenhos animados, espetáculos, parques temáticos, licenciamento de produtos, entre outros projetos.
Dos dez filhos de Mauricio, três trabalham diretamente ao seu lado, além de sua mulher, Alice. Mônica, de 58 anos, é responsável pela área comercial. Mauro, de 32 anos, cuida dos shows ao vivo e parques. Marina Takeda, de 34 anos, administra a parte editorial.
"Meu pai nunca impôs nada para a gente, que devíamos ser isso ou aquilo", diz Mauro, que serviu de inspiração para o personagem Nimbus.
Formado em artes cênicas e música, ele trabalhou em musicais antes de entrar para a produtora há nove anos ao sugerir a criação de um departamento para performances ao vivo. Ele diz que trabalhar com o pai foi algo "delicado" no começo.
"A gente precisava entender como seria ele como meu chefe. Tivemos alguns desentendimentos no início, o que foi natural e importante para termos a relação profissional e de admiração mútua de hoje. Ele é superpresente, mas cada vez mais passa a bola para os filhos e nos dá autonomia."
Mônica está na empresa há mais de 30 anos. Ela é desenhista industrial de formação e diz que não pensava que trabalharia na produtora quando começou como vendedora na loja de produtos da marca.
"Talvez com a Marina, que sempre teve talento para desenhar, ele tivesse alguma expectativa de que ela trabalhasse na empresa, mas nunca foi algo intencional comigo. Fiquei fascinada com a parte comercial e fui me especializando e galgando posições."
Ela diz que trabalhar com a família nem sempre é fácil. "Temos nossas diferenças, principalmente porque eu, meu pai e meus irmãos somos de três gerações diferentes, mas foi um aprendizado muito importante."
Mauricio afirma que as opiniões diferentes costumam ser resolvidas na conversa e que ele, sua mulher e os filhos entendem que é importante estarem unidos, para que o negócio não seja prejudicado.
"Algumas pessoas falam que não é legal trabalhar com família, que dá crise, fica um clima, mas eu não acho. A gente precisa é tomar cuidado para não ficar falando de trabalho o tempo todo."
O cartunista continua a dar expediente todos os dias e acompanha os projetos desenvolvidos pelos filhos e sua equipe. Seu cargo oficial é de presidente, mas ele conta que não resiste a se envolver com outras funções na empresa.
"Quando vejo um desenho sendo feito, sento, olho, dou palpites, mas não é para vigiar ou pegar o lugar do chefe da área, mas porque, modéstia à parte, eu comecei tudo isso e conheço todos os processos", diz.
"Adoro vir trabalhar, meu estúdio é o lugar mais bonito do mundo. Enquanto tiver condições físicas e mentais, vou continuar a vir aqui para bater papo, trocar ideias e passar meu conhecimento para todos."
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