O professor americano que ensina os alunos a sobreviver como homens das cavernas - Leticia Mori Da BBC Brasil em São Paulo 19 agosto 2017
Boa parte dos alunos começa o curso sem saber como quebrar um ovo. Depois das aulas de Arqueologia Experimental e Tecnologia Primitiva do professor Bill Schindler, no entanto, eles se tornam quase homens das cavernas: aprendem a fazer fogo com gravetos, cordas com fibras vegetais, flechas com pontas de pedra afiada e potes com argila. Se fossem abandonados em uma floresta sem comida e roupa, eles seriam capazes de colher frutos silvestres comestíveis, curtir peles, caçar e preparar animais selvagens como alimento.
Embora ninguém mais dependa desse tipo de habilidade, o professor da Washington College, nos Estados Unidos, defende que elas são essenciais para entender o que significa ser humano. "Compreender nossos ancestrais nos ensina a olhar para nós mesmos de uma maneira completamente diferente. Tanto do ponto de vista da nossa dieta e saúde quanto da conexão com o ambiente e com as outras pessoas", diz ele.
É uma aula incomum, mas que está fazendo sucesso — está sempre lotada e recebe estudantes de todas as áreas.
"Espero ajudar a formar não só arqueólogos e antropólogos, mas professores, políticos, cientistas e executivos que tenham uma perspectiva diferente sobre nosso lugar no mundo enquanto tomam decisões que determinam qual o caminho que a humanidade tomará no futuro", diz Schindler.
Aula inusitada
A filosofia do arqueólogo para ensino e pesquisa é baseada na ideia de se envolver em uma tarefa do início ao fim – coletando a matéria prima, aprendendo aquela tecnologia, construindo as ferramentas e usando-as. "Além das aulas teóricas e das leituras, meus alunos de fato fazem uma imersão no que estão aprendendo", diz Schindler.
Para as ferramentas, eles usam materiais como rocha obisidiana (feita de vidro vulcânico), basalto e sílex. Ao abater e limpar animais, nada é disperdiçado. Cada aluno pega um pedaço do animal para um projeto diferente. A carne de um cervo é consumida, a pele se transforma em roupa, os cascos são fervidos para fazer cola, os olhos viram tinta.
"É uma filosofia de ensino baseada em colocar a mão na massa, em aprender através da experimentação", diz Schindler. Os alunos também passam a se preocupar com o impacto que os produtos que usam têm no ambiente e com a origem dos alimentos que consomem.
Retorno às origens
Em 2015, Schindler gravou uma série para o canal National Geographic chamada The Great Human Race (A Grande Corrida Humana, em tradução livre). No programa, ele e a especialista em sobrevivência Cat Bigney viajaram o mundo tentando sobreviver da mesma forma que nossos ancestrais em diferentes períodos da pré-história.
Eles foram à Sibéria e buscaram viver como os caçadores da era do gelo, de cerca de 40 mil anos atrás, durante 8 meses.
"Aprendi muito mais do que poderia imaginar. E foi mais do que aprender – foi sentir, compreender, viver. Hoje, sinto que posso interpretar muito melhor como era a vida no passado e que tenho mais autoridade para falar sobre o assunto", conta ele. "Essas experiências imersivas beneficiam a ciência e a pesquisa porque preenchem lacunas em nosso conhecimento."
Segundo o arqueólogo, as tecnologias primitivas que mais influenciaram a evolução humana são as relacionadas com a obtenção e o processamento de comida.
"As mudanças na dieta impactaram diretamente nossa evolução biológica e cultural. Tudo o que somos do ponto de vista biológico e de como interagimos uns com os outros, ou seja, tudo o que nos torna humanos, nós devemos às mudanças permitidas pelo uso de tecnologias como ferramentas de pedra, fermentação, instrumentos e caça e estratégias de coleta de alimentos", diz Schindler.
Ficamos mais altos, nossos cérebros cresceram, a maneira como interagimos uns com os outros se aprimorou — tudo isso deu origem ao ser humano moderno, o homo sapiens sapiens.
No entanto, diz Schindler, somos uma das espécies de predadores mais fracas do planeta. "Nossas unhas, nossos dentes e nossos órgãos digestivos são completamente inúteis se comparados aos de outros animais. Nós ultrapassamos as limitações de nossos corpos criando mais ferramentas e mais tecnologia."
A série tornou a faculdade em que Schindler trabalha mais conhecida entre o público e aumentou seu prestígio na área de arqueologia - até então, era conhecida mais por seu curso de letras.
Para Schindler, as pessoas se empolgam com a ideia de aprender habilidades de sobrevivência por estarem procurando - conscientemente ou não - conexões com o passado, com o ambiente, com as outras pessoas e consigo mesmas. "A vida moderna está sempre nos afastando dessa ligação. Praticar essas habilidade nos ajuda a reconectar", diz ele.
Além disso, há um certo romantismo na ideia de ser capaz sobreviver sem as facilidades do mundo moderno. "Creio que é mais um desejo de sentir que você poderia ser auto-suficiente do que uma vontade real de estar em uma situação em que essas habilidades sejam necessárias", diz ele.
Um homem de família
Bill Schindler cresceu em um subúrbio de New Jersey, nos Estados Unidos, e começou a criar ferramentas ainda criança. Com 10 anos, contrariando os pais, ele começou a colher frutos silvestres.
Nos anos 1990, ele trocou de faculdade sete vezes. Demorou dez anos para se formar em arqueologia. Hoje, ele é professor titular do departamento de Antropologia da Washington College.
Seu trabalho com arqueologia experimental teve um impacto em sua casa e no dia a dia de sua família. Ele, sua mulher e seus três filhos — de 9, 11 e 13 anos — vivem em uma propriedade rural no Estado americano de Maryland.
"Mudamos principalmente nossa alimentação. Pegamos as lições de nosso passado pré-histórico e as modificamos para torná-las relevantes à nossa vida ocidental moderna. Produzimos praticamente tudo o que cozinhamos – caçamos, colhemos, fermentamos e curamos nossa comida", diz Bill, que produz queijo, iogurte e chucrute para consumo próprio.
Ele e sua família são próximos dos agricultores e pecuaristas que fornecem os alimentos que eles não produzem. "Somos mais saudáveis e mais conectados ao ambiente. Voltamos a comer como seres humanos e vale todo o esforço!", afirma o arqueólogo.
"Não usamos roupas de peles de animais no dia a dia, mas meus filhos sabem como esfolar um animal e curtir a pele para usá-la como vestimenta", diz Schindler. Ele acredita que isso ajuda as crianças a entenderem o valor de tudo o que eles têm.
"Quando eles veem uma jaqueta de couro, não pensam no shopping onde ela foi comprada — lembram-se de quando fizeram suas roupas com pele de veado, de que aquilo tirou a vida de cinco animais."
O objetivo é estar mais consciente das consequências das ações humanas. "Temos que enfrentar a dura realidade de que animais e plantas morrem para que nós vivamos e nos tornemos melhores guardiões do ambiente", afirma.
"Quando a maioria das pessoas pensam sobre comer um animal, elas pensam em comer carne, de forma abstrata. Em nossa casa, quando comemos um animal, pensamos em comer um animal."
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