Projeto de lei de criminalização do funk repete história do samba, da capoeira e do rap - Leandro Machado Da BBC Brasil em São Paulo
O sambista João da Baiana tinha problemas com a polícia quando andava com seu pandeiro pelas ruas do Rio de Janeiro. No início do século 20, ele foi preso várias vezes com o instrumento musical na mão. Na época, sambista era sinônimo de criminoso.
Quase cem anos depois, o Senado analisa uma proposta que pode criminalizar outro ritmo musical brasileiro, o funk. A proposta foi enviada em janeiro por Marcelo Alonso, um webdesigner de 47 anos, morador de um bairro da zona norte de São Paulo. Teve 21.985 assinaturas de apoio.A relatoria da proposta ficou com o senador Romário Faria (PSB-RJ) - o Congresso permite que ideias de cidadãos possam virar projeto de lei se conseguirem 20 mil assinaturas de apoio em quatro meses. Agora, audiências públicas para debater o tema devem ocorrer no Senado.
Por enquanto, o projeto não detalha o que exatamente seria proibido, quem seria punido ou como seria a punição.
A proposta diz apenas: "É fato e de conhecimento dos brasileiros, difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdos podre (sic) alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescente e a família. Crime de saúde pública desta 'falsa cultura' denominada funk".
Depois do parecer de Romário, o texto deve passar por comissões no Congresso e pode ir à votação na Câmara e em seguida no Senado.
A possível criminalização do funk vem causando polêmica. Adeptos da música dizem que, apesar de o ritmo ser um dos mais tocados no país, ainda sofre repressão e preconceito. Especialistas afirmam que a proposta legisativa lembra perseguições sofridas por ritmos e manifestações surgidas dentro da comunidade negra, como o samba, a capoeira e o rap.
"Esse retrato do funk como coisa de vagabundo e criminoso não é arbitrário", explica Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela USP. "Existem outras manifestações que foram perseguidas por serem ligadas a negros, pobres e moradores do subúrbio. Sambistas eram associados à vadiagem, eram chamados de vagabundos. Muitos foram presos."
A respeito da polêmica, a cantora Anitta, que começou sua carreira nos bailes funk, afirmou à BBC Brasil: "Acho que primeiro as pessoas precisam buscar entender o país onde vivem para depois criticar o funk". Para ela, proibir o funk é como punir o mensageiro pelo teor da mensagem.
"Se você quer mudar o funk ou o que está sendo falado ou a forma que ele entra na sociedade, você então deve mudar a raiz, as questões educacionais, as questões que fazem a criação do funk."
Reinaldo Santos de Almeida, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem opinião parecida. "A criminalização do funk é a forma pós-moderna de repressão penal da cultura popular marginal nos morros cariocas", diz.
Segundo Almeida, cuja tese de doutorado foi sobre a criminalização do samba, a perseguição ao ritmo símbolo do país era essencialmente racista. "Era tão racista quanto o sistema de Justiça criminal brasileiro, cujo critério determinante é a posição de classe do autor, ao lado da cor de pele e outros indicadores sociais negativos, tais como pobreza, desemprego e falta de moradia", diz.
No século passado, o sambista João da Baiana (1887-1974), por exemplo, precisou de ajuda de um congressista para não ser mais preso nas ruas. O senador José Gomes Pinheiro da Fonseca (1851-1915), fã de samba e um dos políticos mais importantes da época, escreveu uma dedicatória no pandeiro de João. Quando era parado pela polícia, o músico mostrava o instrumento com a assinatura. Funcionava como um salvo-conduto.
A criminalização durou até a Presidência de Getúlio Vargas, que passou a valorizar elementos da cultura brasileira para reforçar o nacionalismo, uma de suas bandeiras. Porém, alguns sambistas ainda sofreram com a censura. Músicas que ironizavam o trabalhismo, um dos pilares do Estado Novo, sofreram intervenção.
A letra de Bonde de São Januário, de Ataúlfo Alves e Wilson Batista, por exemplo, teve um trecho alterado por ordem do governo. A letra ironizava: "O bonde São Januário/ leva mais um otário/ sou eu que vou trabalhar". A palavra "otário" foi trocada por "operário".
Capoeira e rap
Assim como o samba, a capoeira é hoje um dos símbolos da cultura brasileira. Nos séculos 19 e 20, no entanto, ela também era crime. Antes da Lei Áurea, de 1888, o medo dos governantes era de que a dança, misturada à luta, pudesse levar a uma revolta de escravos.
"Dessa forma, as autoridades, buscando conter a evolução da prática da capoeira, pelo medo de uma rebelião escravista e visando punir os praticantes, entenderam, de forma implícita, que a prática da capoeira podia ser tratada como vadiagem", escreveram as pesquisadoras Janine de Carvalho Ferreira Braga e Bianca de Souza Saldanha em estudo sobre a criminalização da modalidade.
Mesmo depois da Lei Áurea, a luta continuou proibida. O Código Penal de 1890 avisava da possível punição: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".
A capoeira só deixou de ser crime também durante o governo Vargas, que enxergou na modalidade uma forma de valorizar a cultura brasileira.
Mais tarde, e em menor proporção, o rap também teve problemas com a Justiça. Em novembro de 1997, os integrantes da banda Planet Hemp foram presos em Brasília por "apologia às drogas", em virtude de suas letras sobre consumo de maconha.
No ano 2000, a polícia do Rio "investigou" o clipe Soldado do Morro, do rapper MV Bill, antes mesmo de ele ser lançado. Segundo a polícia, o vídeo fazia "apologia ao crime".
E o funk?
Para o pesquisador Cymrot, o funk começou a ser visto com maus olhos em 1992, depois de um suposto arrastão nas praias de Ipanema, Copacabana e Arpoador, no Rio. Jovens de dois morros se encontraram e realizaram uma espécie de "coreografia da violência". "Foi algo parecido com um bate-cabeça de shows punk. A intenção não era assaltar ninguém, mas foi a imagem que ficou", diz o pesquisador.
"No Brasil, as pessoas ficam tensas quando um grupo de jovens negros chega na praia, ou quando se reúne em qualquer lugar. As pessoas se assustaram com essa imagem", explica Cymrot, sobre o motivo de aglomerações como os bailes serem malvistas.
Depois, ainda nos anos 1990, houve duas CPI no Rio para investigar o tráfico de drogas e a suposta exploração sexual de crianças em bailes funk nos morros cariocas.
As festas também foram proibidas com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em morros antes dominados por facções criminosas.
Em outro caso, a Justiça proibiu apresentações do funkeiro MC Pedrinho, quando ele tinha 13 anos. O garoto começou a carreira com 11 anos, cantando músicas com palavrões e pornografia. Para a Justiça, o adolescente não tinha idade para ser exposto ao conteúdo de suas músicas - a empresa que cuidava de sua carreira poderia ser até multada.
Em São Paulo, vereadores e deputados apresentaram projetos que propunham proibir os chamados "pancadões", bailes funk que ocupam ruas de bairros da periferia. Os eventos reúnem milhares de jovens e carros com som altíssimo, barulho e bagunça que incomodam moradores. Em alguns casos, há consumo e tráfico de drogas - alguns pancadões foram encerrados com bombas lançadas pela polícia.
'Joio do trigo'
Os pancadões foram um dos principais motivos que levaram o webdesigner Marcelo Alonso a apresentar a nova proposta que pretende criminalizar o funk. Três desses eventos ocorrem com frequência em seu bairro - que não revela "por segurança". Ele diz que já foi ameaçado depois que apresentou o tema ao Senado.
Marcelo também é administrador da página "Funk é lixo", que tem mais de 140 mil seguidores no Facebook.
Outro motivo, diz, são os chamados "proibidões", que têm letras pornográficas e fazem apologia ao crime. "O funk foi por um caminho esquisito, de sexo precoce, pedindo para que as pessoas matem policiais", diz Marcelo. "Funk é um crime de saúde pública. Como você pode olhar para a sua mãe quando, ao lado, está tocando uma música que fala de colocar a piroca na cara dela, na bunda dela", diz.
Fabio Luis de Jesus, 37, conhecido como MC Koringa, foi um dos funkeiros que mais criticaram a proposta. "Você não pode criminalizar um ritmo por causa de uma única vertente", diz. "O proibidão nada mais é do que uma realidade que se vê nas ruas. Se você não quer que as pessoas cantem sobre crimes, dê condições de vida melhor para elas", diz.
O cantor carioca tem 21 anos de carreira e suas músicas já foram trilha de novelas da Globo. "Se o funk fosse esse monstro, não haveria tanto espaço para ele na televisão", diz.
O funkeiro e o webdesigner Marcelo foram convidados pelo senador Romário para uma audiência pública que vai debater o tema. Outros cantores conhecidos, como Bochecha e Valesca Popuzuda, também foram chamados. "É claro que vou à audiência", diz Marcelo. "Tenho de colocar esses funkeiros no lugar deles."
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