Nem todo romano era branco – o império era mais diverso do que parece - POR: EL PAÍS - JAIME RUBIO HANCOCK - 29 JUL 2017
Tuiteiro da ‘alt-right’ acredita que todos os antigos romanos eram brancos; historiadores o corrigem
Britânia, século II d.C.. Um legionário romano de alta patente dá instruções a seus soldados para construir um forte a cada milha. Assim começa um vídeo de divulgação da BBC, voltado para o público infantil, que muitos consideram pouco fidedigno. A razão? O legionário não é branco e, para alguns, isto significa ceder à ditadura do politicamente correto. Mas, sim, havia legionários negros, apesar de nunca termos visto nenhum deles nos clássicos filmes de romanos.
A queixa racista viralizou especialmente depois de um tuíte de Paul Joseph Watson, que escreve no site conservador e conspiratório Infowars (conhecido por propagar boatos como o pizzagate, segundo o qual uma pizzaria estava no epicentro de uma rede de pedofilia ligada a Hillary Clinton). Watson lamenta com sarcasmo que se retrate essa província romana – a atual Inglaterra – como “etnicamente diversa”. “Quer dizer, quem se importa com a precisão histórica?”, arrematava.
Sua postagem foi compartilhada mais de 2.800 vezes e soma 1.400 respostas. Mas, como lhe responde, também pelo Twitter, a historiadora Mary Beard, ganhadora do prestigioso prêmio Princesa de Astúrias, o vídeo da BBC “na verdade é preciso, há muitas provas firmes da diversidade étnica na Britânia Romana”. O fato de a BBC ter escolhido como protagonista um romano não branco serve para explicitar uma realidade frequentemente esquecida.
Concorda com essa ideia Jordi Cortadella, professor de História Antiga na Universidade Autônoma de Barcelona: “O Império Romano e a Legião eram muito mais diversificados do que possamos imaginar”, explica ao EL PAÍS em entrevista por telefone. Um legionário negro “não é algo disparatado”, embora seja “estranho” se nos referirmos especificamente a subsaarianos. “Cruzar o Saara numa época em que ainda não havia dromedários na região era muito difícil”, conta. Isso sim, “os escravos negros eram procurados e apreciados”, e muitos acabavam fazendo parte “das legiões ou das tropas auxiliares. Na Britânia havia destacamentos do norte da África”.
Quem também respondeu no Twitter foi o professor de história britânico Mike Stuchbery, recordando, numa série de postagens, que as legiões eram compostas por soldados de todas as partes do império, incluído o norte da África e Oriente Médio, e que havia cidadãos britânicos de classe alta procedentes do Norte da África. Em outras respostas a Watson, e saindo da Britânia, também há alusões a são Mauricio, comandante da Legião Tebana durante o século III, integrada por cristãos egípcios.
A diversidade não era exclusiva da Britânia, é claro. Mary Beard tem escrito sobre este tema em vários de seus artigos publicados no The Times e incluídos em seu livro It's a Don's Life.Uma sociedade etnicamente diversa
Por exemplo, em “Racismo na Grécia e em Roma”, Beard explica que ambas as sociedades desconfiavam dos estrangeiros, e eventualmente os desprezavam. “Mas não se preocupavam muito com a cor da pele”, diz. E em seu livro SPQR, ela acrescenta que, com a expansão do império, a palavra “latino” foi redefinida, a ponto de ter “deixado de ser uma identidade étnica para se referir a um status político sem relação com a raça e a geografia”.
De fato, continuamos sem se saber exatamente até que ponto era multicultural a população do Império, entre outras coisas porque não se prestava atenção a essa questão. Some-se a isso que “não havia uma classe homogênea de escravos, ou uma raça ou cor diferente para seus senhores”, além do fato de muitos escravos terem sido alforriados. Por tudo isto, “os cidadãos romanos foram o grupo mais etnicamente diverso antes da época moderna”.
Cortadella descreve a Roma clássica como “uma grande metrópole, comparável a Londres ou Paris no século XIX, ou a Nova York nos séculos XX e XXI”, e que frequentemente era visitada por embaixadores de outras províncias, acompanhados de seus séquitos. Portanto, a capital era de fato mais diversa que o resto do império, “assim como Nova York não se parece tanto com o resto dos Estados Unidos”.
Na Hispânia, por exemplo, essa diversidade depende de estarmos falando da costa ou do interior: "Cidades como Tarraco [Tarragona], Cartago Nova [Cartagena] e Gadir [Cádiz] eram muito cosmopolitas, devido à relação marítima com Roma e o resto do império. As cidades do interior, como Mérida, Córdoba e Iesso (a atual Guissona), eram mais homogêneas".
Isto não significa que não houvesse inquietações e atritos a respeito: muitos se questionavam se, com tantos escravos alforriados, a essência da romanidadenão estaria se perdendo; outros se queixavam do pouco que os estrangeiros faziam para se integrar, como escreve Beard em um artigo no qual, apesar de tudo, descreve Roma como uma espécie de “cadinho de culturas”, onde ninguém entenderia o significado do termo “imigrante ilegal”.
O primeiro imperador africano
Septímio Severo (146-211) nasceu na atual Líbia, filho de um líbio e de uma europeia. Foi o primeiro imperador romano oriundo do norte da África. Cortadella explica que era “de estirpe bereber, e não resta dúvida de que sua tez era morena”. E acrescenta: “Isto para Roma não era nenhum problema, já que era uma sociedade muito aberta, tanto étnica como religiosamente”. O importante era “adorar ao imperador, que é o equivalente a jurar a Constituição”, além de obedecer às leis e pagar os impostos.
Beard acrescenta que, embora "provavelmente não fosse negro (algo que eventualmente se discute), certamente não era tão branco como se deduz de muitos de seus bustos de mármore”. Beard observa que alguns bustos o mostram com traços africanos, enquanto em outros ele parece igual a qualquer outro imperador romano. O mesmo ocorre com seu filho, Caracalla, de mãe síria.
E por que persiste esta imagem de uma Roma europeia e branca? É por causa dos filmes? Ou porque os livros de história não se ocuparam deste assunto? “Roma foi reinterpretada em todas as épocas”, diz Cortadella. “Não se tinha a mesma ideia de Roma na Idade Média do que no Iluminismo ou do que atualmente, quando temos uma imagem mais parecida com os Estados Unidos do que com o que realmente foi o Império Romano. Por isso vale a pena redescobrir Roma.”
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