"Tiozão", "cascudo", "relíquia do rap carioca". É assim que
MV Bill se vê aos 43 anos e se descreve em
Tio Bill (Old Is Cool), single que chega hoje (30/03) ao seu
canal do YouTube. A letra, composta pelo próprio Bill, possui traços autobiográficos — assim como
Vida Longa, cujo videoclipe publicado há um mês já conta com quase 900 mil visualizações. "A música fala sobre minha trajetória e os caras das antigas que ainda estão aí na ativa. Não quis ficar esperando que alguém contasse a minha história por mim", diz. Embora não planeje gravar um CD por enquanto, a música faz parte de uma série de lançamentos que o rapper planeja continuar ao longo do ano. "Tô brincando com isso de lançar no meu canal em doses homeopáticas", conta Bill.
De 1999 pra cá, quando estourou com o álbum Traficando Informações, muitas coisas aconteceram. Uma delas está na possibilidade adquirida de poder traçar seu próprio caminho na produção independente, escolha que já levou Bill a recusar convites de renomadas gravadoras nacionais. "A gente não tem a mesma estrutura de uma gravadora grande, mas a liberdade de lançar do jeito que a gente quer... pô, isso é muito gratificante." Após uma trajetória de quase 20 anos marcados por atuações enquanto músico, ativista, cineasta, escritor, compositor e produtor, o Mensageiro da Verdade (daí o "MV") fala por si só e dispensa maiores apresentações. À Trip, o rapper comenta sua trajetória, envelhecimento, política e o momento vivido pelo rap brasileiro.
Como é fazer música nessa altura do campeonato? Aconteceu uma renovação do público de rap que tem trazido um público diferente do que a gente tinha há 15 anos. É um público mais imediatista, mais rápido, que não tem paciência pra ouvir um álbum inteiro e às vezes não tem ideia da importância de algumas histórias para o gênero ou de como esse caminho foi pavimentado para que outros grupos pudessem passar hoje.
Do seu ponto de vista, essa "renovação do rap" é boa ou ruim? O que acontece no Brasil hoje é uma parada que acontece muito nos Estados Unidos. As músicas mais conhecidas, que estão no mainstream do rap, muitas vezes possuem um refrão mais fácil e letra mais rasa. Tem gente que sofre com a nostalgia de achar que o rap antigamente era mais legal, ou sente saudade daquele que falava da realidade, das diferenças sociais e raciais, que era uma pedrada na cara, mas esse rap nunca deixou de ser feito. Talvez com a mudança de governo, crise, corrupção política, insatisfação coletiva, ele fique em evidência novamente. O rap tem esse poder de unir alguns sentimentos.
“Tem gente que sofre com a nostalgia de achar que o rap antigamente era mais legal, mas esse rap nunca deixou de ser feito”
Mv Bill
Em Tio Bill, tem um trecho em que você diz: "foi muito sofrimento pra chegar até aqui, vagabundo vir agora pra ficar de sacanagem, fodendo uma cultura hip-hop." Quem são essas pessoas? Tem de tudo. Tem gente mais nova que não entendeu qual é o espírito do hip-hop, gente da antiga que até hoje também não conseguiu entender e que às vezes acaba prestando um desserviço a uma parada que é tão importante e já salvou tantas vidas. Cabe às pessoas entenderem a importância dessa cultura em si para preservá-la, do mesmo jeito que os caras da antiga do rock querem que o rock nunca morra, nunca perca sua essência. Quem faz parte da cultura hip-hop de verdade, sente de verdade, vive no dia a dia, e não pode deixar que isso morra.
E qual é a diferença entre fazer rap no Brasil do tempo em que você começou para o Brasil de hoje? Nos anos 90, havia uma certa uniformidade, todo mundo cantava meio parecido. Nesse sentido, acho que o rap precisava dar uma respirada, e agora que já respirou bastante, precisa voltar a inflar aquele sentimento de espírito combativo. Não tanto egocêntrico, falando de si próprio, como muitas letras da atualidade, mas do coletivo, de outros assuntos que falem do Brasil como um todo, não de uma história única. Mas eu também fico muito feliz de atravessar e poder viver esses dois períodos.
Na letra você fala sobre ser um tiozão. Você se sente velho? Pô, sim! Primeiro porque, quando olho pros meus contemporâneos de rap, muitos já pararam, alguns já morreram e outros estão em depressão, enquanto eu sou um cara muito agraciado por ainda estar falando com outras gerações. Na semana passada, fiz um show em São Paulo e pedi pras pessoas que tinham mais de 40 anos levantarem o braço — ninguém levantou o braço! [risos]
Recentemente, Mano Brown deu uma entrevista pra gente e disse que, quando era mais novo, parecia um cachorro louco que mordia quem passasse na frente, mas que isso mudou com o passar dos anos. Com você também foi assim? Quando somos mais jovens, a gente tem um ímpeto mais explosivo. E eu até entendo às vezes a molecada ser meio sem pensar, destrambelhada, mas aprendi muito cedo também a ter responsabilidade, a me tornar homem de verdade. Às vezes, as pessoas vêm falar comigo 'porra, Bill, tu é um cara muito humilde', e eu acho isso muito estranho, porque o hip-hop prega isso o tempo inteiro. Humildade e união entre as pessoas. Só que tem gente que entende errado e acaba 'metendo' aquela marra com quem nos oprime também com os nossos. Aí é marra com outro grupo de rap, de chegar no camarim de festival de rap e encarar o outro com cara feia, uma vibe pesada pra caralho. E eu sei que muitos deles só vão aprender depois que ficarem um pouco mais velhos.
Você está saindo da Cufa [Central Única das Favelas, uma das maiores ongs do país] agora. Já tem outros projetos em vista? Eu ainda tenho que pensar um pouco sobre o que vou fazer da minha vida. Além de fazer música, eu sou muito assediado por partidos políticos.
Como assim? Eles sabem que eu sou uma pessoa politizada e me chamam pra todo tipo de partido que você possa imaginar, tudo quanto é tipo de cargo que existe. Só que eu nunca fui mordido por isso, acho que minha contribuição é através das músicas, através das minhas opiniões, e acredito que a política atual não oferece espaço para pessoas bem-intencionadas. Agora não dá pra se meter nisso, não.
Então o seu negócio é o rap mesmo? A princípio, é o rap. Pode ser até que no futuro eu mude, mas hoje fazer música é a coisa que me diverte mais.
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