OBSERVANDO A PAUTA - Dos engenhos de açúcar à Carne Fraca: como a pecuária ajuda a contar a história do Brasil - João Fellet Da BBC Brasil em Brasília
Muito antes da Operação Carne Fraca, que denunciou um esquema de corrupção envolvendo frigoríficos e fiscais agropecuários, a pecuária no Brasil era só para os fortes - bois e seus donos.
Encomendados por senhores de engenho, os primeiros bovinos a chegar ao país eram empregados nas fazendas de açúcar do Brasil Colônia como bestas de carga e força motriz, além de fonte de comida e couro.
Segundo o Centro de Referência da Pecuária Brasileira - Zebu, os primeiros muares desembarcam no país por volta de 1534, vindos da então colônia portuguesa de Cabo Verde, na África.
Desde então, a pecuária se tornou um dos setores mais rentáveis da economia brasileira, movimentando R$ 400 bilhões em 2016 - mas a expansão da atividade jamais se dissociou de polêmicas e escândalos.
Ocupação de territórios
Conforme os rebanhos cresciam, o gado deixou de ser usado unicamente na lavoura de cana e se tornou crucial para a ocupação de territórios da jovem colônia.
Em artigo publicado em 1995 na revista Le Portugal et l'Europe Atlantique, le Brésil et l'Amérique Latine, a historiadora Maria Yedda Leite Linhares (1921-2011) remonta o crescimento da pecuária no Brasil às sesmarias, terras distribuídas pela Coroa e destinadas à produção agrícola.
Linhares conta que, para conseguir ocupar os territórios, os sesmeiros costumavam arrendar áreas menores a sitiantes que possuíam rebanhos. Era importante preencher as áreas porque terras livres podiam ser retomadas pela Coroa para serem redistribuídas.
Começa então a grande marcha bovina para o interior: o gado avança de São Vicente (SP) até os campos de Curitiba; de Pernambuco, para o Agreste e o Piauí; da Bahia, para o Ceará, o Tocantins e o Araguaia. Nos séculos seguintes, os rebanhos ocupariam ainda o Semiárido, Minas Gerais, o Rio Grande do Sul, o Cerrado e franjas da Amazônia.
Linhares diz que está superada a noção de que as fazendas de gado pioneiras se caracterizavam pela natureza livre do trabalho de peões e vaqueiros, em contraste com a escravidão nos engenhos de cana.
"Tal avanço sobre a terra nada teve de pacífico, sendo numerosos os registros de reação violenta das populações indígenas à incorporação de sua força de trabalho nas fazendas de gado", ela afirma.
Em Os índios e a civilização, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) descreve o avanço da pecuária em terras dos povos Timbira, no sul do Maranhão.
"À custa de tramoias, de ameaças e de chacinas, os criadores de gado espoliaram a maioria deles, e os remanescentes de vários grupos se viram obrigados a juntar-se nas terras que lhes restavam, insuficientes para o provimento da subsistência à base da caça, da coleta e da agricultura supletiva desses índios."
No século 19, a atividade se transforma com a chegada de raças zebuínas da Ásia, mais adaptadas ao clima tropical. Até então, boa parte do rebanho brasileiro era composto por raças taurinas, de origem europeia.
Alguns fazendeiros do Triângulo Mineiro viajam eles próprios à Índia para buscar os animais, identificados pela presença de corcova (cupim) e pelas orelhas longas.
Outros pecuaristas compram os muares de mascates, vendedores ambulantes que conduzem pequenos rebanhos de fazenda em fazenda. Alguns mascates fazem fortuna e mandam construir palacetes nas principais cidades da região.
Perón e o primeiro impulso à exportação
Nos anos 1940, com a ascensão de Juan Domingo Perón à Presidência da Argentina, novos mercados se abrem para o Brasil.
Pesquisador de pecuária do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da escola de agricultura da USP (Esalq), Sérgio de Zen diz que naquela época a Argentina era a grande fornecedora de carne bovina do mundo.
Ele conta, porém, que o intervencionismo de Perón fez com que multinacionais do setor buscassem o Brasil como alternativa.
É nessa época que empresas como a inglesa Anglo e a americana Swift se instalam no país, trazendo técnicas industriais para o abate e o processamento da carne.
Com o fim da Segunda Guerra (1939-1945), diz Zen, a pecuária se reorganiza na Europa e avança nos EUA e na Austrália. O Brasil sofre com a competição, e as multinacionais deixam o país, pressionadas também pela concorrência com abatedouros clandestinos.
Na década de 1970, o avanço da agricultura pelo Cerrado dá novo fôlego ao setor. Com a correção da acidez dos solos e a introdução de capins mais adaptados ao bioma, a raça zebuína Nelore se consolida como a principal variedade do país.
Hoje o Centro-Oeste é a principal região produtora do Brasil, mas a expansão de capins exóticos - especialmente do gênero braquiária - ameaça a vegetação original remanescente.
A ditadura militar também estimulou a atividade ao promover a colonização da Amazônia. A construção da rodovia Transamazônica (1968-1974) empurrou a fronteira pecuária até o sul do Pará, enquanto a oeste fazendeiros - muitos deles paulistas e gaúchos - substituíam florestas por pastagens em Mato Grosso, em Rondônia e no Acre, às margens da BR-364.
Até hoje, a pecuária é tida como a principal responsável pelo desmatamento da Amazônia. Áreas destruídas pelo fogo podem se tornar pastagens sem grandes custos, e a mobilidade dos bois permite que sejam criados longe de estradas e centros de consumo.
Além disso, o gado criado em áreas desmatadas ilegalmente pode ser abatido e comercializado por frigoríficos regulares, o que dificulta seu rastreamento.
Na Amazônia, assim como em boa parte do Centro-Oeste, os rebanhos têm espaço, água e clima favorável o ano todo, uma grande vantagem competitiva em relação à Europa ou aos EUA, onde os invernos são rigorosos e os animais passam ao menos parte do ano confinados.
Especulação bovina
Mesmo com a expansão territorial, o setor ainda enfrentava turbulências. Entre as décadas 1980 e 1990, nos anos de hiperinflação, o gado se tornou uma alternativa à moeda que desvalorizava rapidamente. Os animais eram comprados e logo revendidos para que se lucrasse com a especulação.
Só após a estabilização da economia com o Plano Real, em 1994, o setor é forçado a se tornar mais eficiente.
Avanços tecnológicos possibilitam que mais bois sejam criados em menos espaço. No fim dos anos 1990, a epidemia de vaca louca na Europa e a de febre aftosa na Argentina abrem espaço para o gado brasileiro.
A pressão de compradores estrangeiros e de ambientalistas quanto ao desmatamento da Amazônia e à qualidade da carne leva a indústria nacional a endurecer o controle sobre o abate.
As autoridades sanitárias também se tornam mais rigorosas. Sérgio de Zen, da Cepea-Esalq, diz que um estudo de 2012 apontou que naquele ano só 6% dos abates ocorriam sem fiscalização.
Nos anos Lula e Dilma, o governo estimula a concentração do setor com sua política de "campeões nacionais". Sob a gestão de Luciano Coutinho, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) injeta recursos em alguns grupos, que incorporam outros e se tornam gigantes globais.
A Sadia se funde com a Perdigão, dando origem à Brasil Foods (hoje BRF); o Grupo JBS compra as redes de frigorífico Bertin e Independência e passa a controlar algumas das principais marcas do mercado, como Swift, Friboi e Seara.
A financeirização da pecuária atinge níveis inéditos. O Brasil passa a disputar com a Índia o posto de maior exportador mundial de carne bovina e se torna o segundo maior produtor, atrás dos EUA.
Novas técnicas
Pesquisador-chefe da subdivisão de gado de corte da Embrapa, agência de pesquisa subordinada ao Ministério da Agricultura, Cléber Soares diz que hoje a expansão da atividade não necessita de novas áreas.
Ele afirma que nas fazendas bovinas do Brasil se produzem hoje, em média, 90 quilos de carne por hectare ao ano, mas que é possível produzir até 600 quilos com a adoção de tecnologias já disponíveis.
Soares aposta em sistemas que integram, numa mesma fazenda, pecuária, plantações de soja ou milho e florestas comerciais. Hoje boa parte do gado brasileiro se alimenta só de capim. Quando é possível complementar a dieta com cereais, Soares diz que os rebanhos requerem menos espaço.
O pesquisador também aposta no contínuo aperfeiçoamento dos animais e conta que, séculos após importar seus primeiros bois e vacas, o Brasil se tornou o maior exportador de genética bovina do mundo.
Ele diz que, numa inversão de papéis, o país passou a vender inclusive para as regiões a que deve a formação de seu rebanho: hoje raças zebuínas brasileiras são exportadas para a Índia, e raças taurinas nacionais são despachadas para a Europa.
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