OBSERVANDO A PAUTA - Como uma funkeira 'negra e gorda' virou símbolo de beleza e voz da favela - Renata Mendonça - @renata_mendonca Da BBC Brasil em São Paulo
Carolina tem 23 anos e aprendeu na escola, ainda criança, aquele que seria seu rito de sobrevivência no Morro do Preventório, comunidade no bairro de Charitas, em Niterói (RJ): bater para se defender. A vida toda ela ouviu piadas sobre seu peso, sua cor, suas origens - e sempre respondeu "na porrada".
"Sofri um pouquinho na escola. Mas nada de chorar, de ficar deprimida… eu saía na porrada, apanhava e batia. Fui criada assim. Chegava em casa toda marcada e falava: não, não aconteceu nada", resume.
Criada pelos avós, foi morar sozinha aos 14 anos, quando o avô faleceu. Logo desistiu de brigar - e da própria escola, antes mesmo de iniciar o Ensino Médio.
"Eu queria ser juíza, mas, quando meu avô morreu, percebi que era só sonho de criança. Que o pobre, o negro, pra chegar até juiz é um mar sem barco."
Os anos passaram e Carolina virou MC Carol Bandida, ou simplesmente MC Carol, uma funkeira famosa que tem cerca de 300 mil seguidores só no Facebook. Mesmo assim, as ofensas que ouve desde pequena continuam.
Às vezes, surgem até em forma de ataque coletivo em suas páginas nas redes sociais, como aconteceu neste ano, quando ela registrou queixa na Delegacia de Crimes de Informática.
Sua resposta, porém, mudou: não é mais a violência - é a música.
Garota-propaganda de uma marca de beleza desde agosto, Carol fez um verso para o anúncio no qual se descreveu com "um olhar confiante, na voz, na atitude. Vou mostrar que ser negra e gorda é virtude".
"A gente está acostumado a ver negros sendo chicoteados na TV. E quando aparece um negro sendo principal, isso abre a mente das pessoas", afirma em conversa com a BBC Brasil.
Violência
Sem pai, nem mãe - ela se recusa a falar sobre eles -, Carol cresceu em meio à violência e se apropriou dela para reagir a qualquer tipo de agressão que julgasse sofrer.
Chamavam de gorda? Batia. Chamavam de macaco? Apanhavam. Diziam que tinha que voltar para jaula? Fazia-os voltar para o chão.
"Eu cresci na defensiva, achando que tudo tinha que resolver na porrada", reflete hoje.
A reação aos xingamentos e preconceitos foi sempre essa. Ela nunca chorou, sempre bateu - e muitas vezes também apanhou. Quando cresceu, sobrou até mesmo para seus namorados.
A menina viu a tia apanhar do marido, soube que com a vó não era diferente e concluiu sozinha que havia um denominador comum: "para mim, em um casamento, alguém sempre tinha que bater e alguém sempre tinha que apanhar".
"E eu pensava: não vai ser eu (que vou apanhar)", diz.
"Foram pelo menos três mulheres da minha família. E eu não queria isso mesmo para a minha vida. Eu falei: tá maluco? Eu vou crescer e vou meter-lhe a porrada no meu marido. Aquilo ali mexeu muito com a minha cabeça."
E foi o que ela fez com alguns namorados. Um deles levou um soco ao chamá-la de "safada". Outro partiu para cima dela - e acabou "caindo" na escada.
Carol admite que nem precisava de muito para ela partir para a violência.
"Falar alto comigo já era motivo de eu agredir, nem precisava xingar."
"Hoje em dia, estou bem melhor. E acho que isso reflete muito na criança. Mais ainda no homem. O menino que cresce vendo o pai espancando a mãe… qual é a porcentagem de chance de ele crescer e não agredir uma mulher, se ele vê aquilo ali todos os dias?"
Hoje, Carol transformou a experiência pessoal em desabafo - em forma de funk. Em uma parceria com outra MC, a paranaense Karol Conka, lançou neste mês a música 100% feminista, que em uma semana somava mais de meio milhão de visualizações no Youtube.
"Presenciei tudo isso dentro da minha família, mulher com olho roxo, espancada todo dia. Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia que mulher apanha se não fizer comida. Mulher oprimida, sem voz, obediente. Quando eu crescer eu vou ser diferente. Eu cresci, prazer, Carol Bandida. Represento as mulheres, 100% feminista", diz a letra.
Beleza
Depois de vinte e poucos anos ouvindo xingamentos e chacotas sobre sua aparência, Carol teve a redenção que nunca nem sequer imaginou.
No último mês de julho, a Avon, uma das principais marcas mundiais de cosméticos, a convidou para participar de uma campanha de maquiagem para o público brasileiro. A Carol Bandida, "negra, gorda e da favela" foi parar na TV como modelo de beleza.
"Fiquei muito feliz. Porque é tão difícil ver isso - e é muito importante. Não me lembro de ter visto uma mulher negra e gorda em comercial de beleza", diz.
Ela reforça que, mais do que uma satisfação pessoal, a campanha toca milhões de mulheres que sofrem o que chama de "preconceito indireto".
"Pô, se eu ligo a televisão e só vejo loira, magra de cabelo liso… Cara, que autoestima eu vou ter de sair na rua? Quando eu entro em uma loja e não acho roupa do meu tamanho, um short do meu tamanho… isso é um preconceito indireto. Quer mostrar para mim que eu sou anormal."
Uma de suas postagens mais curtidas no Facebook traz uma foto em que uma mulher acima do peso pratica ioga, vestida com roupa de ginástica. O texto diz: "Quero apenas provar que ser gorda não é sinal de depressão, limitação ou qualquer outra coisa negativa!".
A postagem teve mais de 93 mil likes e 15 mil compartilhamentos.
É um assunto que Carol sempre faz questão de levantar.
"Por que o Miss Brasil não tem mulheres gordas? Eles querem mostrar pra gente que as mulheres mais bonitas são as mulheres magras, sempre. Eles querem impor que a gente tenha que vestir 36, 34. E isso é absurdo."
Voz da favela
Para quem acusa o funk de ser apenas "putaria, incitação ao sexo ou à violência", Carol responde rápido:
"O preconceito com funk é uma ignorância. O rap, o hip hop internacional, o forró falam as mesmas coisas, às vezes até mais pesadas."
"É porque o funk veio da comunidade. Até um tempo atrás, MCs e DJs eram parados pela polícia, perdiam equipamento, eram vistos como bandidos."
O estilo musical é a voz que as favelas não têm na sociedade, ela diz. E garante: é por causa dele que muita gente se livra do caminho do tráfico.
"O funk representa trabalho. O tráfico abraça as pessoas na favela. E digo por mim mesma: o que seria de mim hoje? Eu poderia estar até morta se não cantasse. E o funk é a nossa voz, a gente pode botar a boca no trombone, estar na televisão, jornais, redes sociais… falar o que acontece lá, na comunidade."
Uma das recentes criações de Carol com maior repercussão chama-se Delação Premiada. A inspiração veio do noticiário político-policial, que mencionava esse termo, cujo significado ela não fazia ideia, todos os dias.
"Fui pesquisar e descobri que delação premiada era ganhar um prêmio para 'xnovar' (sic) o amiguinho. Só que isso não existe na comunidade."
O resultado foi um funk em que ela canta sobre a violência policial na favela.
"Lá, quando eles querem saber alguma coisa, eles vão lá no moto-táxi, chamam o garotinho e dão uma voltinha com ele... Ou, se não, só ameaçam. Aí o pessoal já conta, porque ninguém quer dar uma voltinha com eles. A voltinha pode não voltar. O Amarildo deu uma voltinha", diz.
"Eu quis botar o tema da música pra poder intrigar a pessoa que não sabe o que é isso. Pra pesquisar, procurar saber."
Por causa de seus posicionamentos fortes, Carol é reconhecida por seu público como feminista. Mas ela garante que só descobriu o que é feminismo há menos de um ano.
"Nasci para ser uma mulher forte. Tenho muito orgulho dessa força que eu tenho. Mas eu não sabia que tinha um nome pra isso. Eu achava que o nome era 'sapatão', porque eu sempre ouvi desde pequena que era sapatão."
"Eu não sabia o que era, mas eu tinha uma parada dentro de mim do tipo: não abaixe a cabeça para ninguém. Nunca aceitei meu lugar de mulher no mundo."
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