Pensando bem, tenho muitas explicações para o que me aconteceu. O mercado estava lotado, fazia um calor infernal e eu ainda estava confuso com a mistura de paisagens, sons e aromas me estimulando a todo momento. Inadvertidamente, comprei um talismã vodu no mercado de Cap-Haitien, na costa norte do Haiti.
O que eu achei ser uma imagem da Virgem Maria era, na realidade, de Ezili Dantor, um dos espíritos da religião.
Imediatamente tratei de passar a imagem adiante para um amigo que coleciona representações vodus. Mas logo percebi que minha angústia era totalmente desnecessária.
O Haiti reivindica o vodu como uma de suas duas religiões oficiais, ao lado do catolicismo. Mas longe da imagem macabra transmitidas por filmes hollywoodianos, o vodu haitiano, com origem na África, é apontado como o responsável ter fomentado a bem-sucedida rebelião escrava que libertou o país dos domínios de Napoleão e o tornou independente da França em 1804.
Igualmente, muitos haitianos veem o vodu como algo fundamental na atual reconstrução do país, com sua mensagem de alegria e cooperação. Além disso, sua influência nas tradições culturais haitianas traz dólares dos turistas para comunidades que foram devastadas pelo forte terremoto que atingiu o Haiti em 2010.
Capitalizando na tradição
A cidade de Jacmel, no sul da ilha, já foi um importante centro produtor de café. Hoje o lugar reúne uma colônia de artistas e atrai pessoas de todo o mundo, que vêm para comprar artefatos feitos à mão, como máscaras e estatuetas.
Operadoras de turismo, como a Air Transat e a G Adventures, reconheceram o filão e recentemente começaram a promover passeios culturais pelo Haiti.
"O vodu permeia todos os aspectos da arte haitiana, seja na pintura, na escultura, na música ou na dança. Foi a religião que ajudou a definir e dar estilo a essas obras, consciente ou inconscientemente", explica Jean-Cyril Pressoir, sócio da Tour Haiti, empresa de turismo e logística de Porto Príncipe, a capital do país.
"Se hoje conseguimos capitalizar sobre nossas tradições culturais, deveremos muito ao vodu, que nos trouxe tudo isso."
Um dos mais bem-sucedidos artistas haitianos é Jean-Baptiste Jean Joseph, um hougan (sacerdote) cuja peristil (o equivalente vodu à igreja) funciona também como ateliê. Ali ele exibe suas belas peças de tapeçaria inspiradas no vodu e vende-as por até US$ 6,5 mil (R$ 26 mil na cotação atual).
Jean Joseph conta que foi educado como cristão, mas certa noite mudou de religião, durante um sonho. "Ezili Dantor apareceu para mim, um espírito de amor e partilha. Agora eu tenho o mesmo espírito", diz.
Ele então nos leva para os fundos da peristil para realizar uma cerimônia usando a garrafa de rum que nosso grupo de visitantes tinha comprado como oferenda.
Apesar do calor, senti um frio na espinha quando nos aproximamos do poto mitan, um poste no meio da sala onde Jean Joseph interage com os espíritos.
"É aqui que você faz os sacrifícios?", pergunto. Minha amiga haitiana Kazoul Belizaire, fervorosa seguidora do vodu, rapidamente agarra meu braço e ri: "Não há sacrifícios. Não é como nos filmes".
Em seguida, nos acomodamos e assistimos em silêncio, enquanto Jean Joseph despeja um pouco do rum perto do poto mitan, e faz o mesmo em duas câmaras menores adjacentes, repletas de ícones e pequenas estatuetas.
Segundo ele, uma é dedicada aos espíritos "mais quentes", capazes de atender pedidos mais rapidamente, mas que são mais voláteis e podem criar consequências não planejadas. A outra é dedicada a espíritos "mais frios" e estáveis.
Jean Joseph também explica que aqui não há bonecas cheias de alfinetes e que o vodu não deveria ser visto como uma força do mal. "O vodu ajuda você a florescer, trabalhar e prosperar. O objetivo final é a felicidade", explica.
‘Nação orgulhosa’
Já na capital haitiana, um coletivo de artistas se reúne em um espaço com vários ateliês a céu aberto conhecido como Atis Rezistans.
A mensagem do vodu também é positiva por ali, apesar de à primeira vista parecer assustadora. Passando por vários edifícios em reconstrução, encontramos uma instalação de inspiração feita com crânios humanos verdadeiros.
Um dos jovens artistas residentes, Jean-Pierre Romel, me conta que esses ícones aparentemente macabros servem como um lembrete para que nós valorizemos a vida em toda a sua beleza. "Quando você pensa em morte, você entende o sentido da vida", explica. "Este é um recado para que nós aproveitemos cada minuto em que estamos vivos."
O coletivo artístico também homenageia o espírito de cooperação do vodu, que está enraizado em cada camada da sociedade haitiana. Muitos haitianos vêm da zona rural, onde todos unem seus recursos, habilidades e talentos para conseguir sobreviver.
"Somos uma nação orgulhosa e temos nossa própria maneira de fazer as coisas", diz Romel.
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