Debate sobre cotas raciais na USP cresce e desafia a principal universidade do País a repensar seu método de inclusão
Não é apenas no saguão do prédio da História e Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – tradicional ponto de reivindicações estudantis – que as cotas raciais vêm sendo pedidas. Em outras instituições da Universidade de São Paulo, nem sempre engajadas, pichações e cartazes gritam para retomar o debate. Na entrada da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), por exemplo, o clamor por “Cotas já!” faz coro com frases de protesto como “Povo forte, povo preto” e “Cotas sim!” nos tapumes próximos ao Instituto de Relações Internacionais (IRI).
O florescimento da discussão na principal universidade do País ocorre paralelamente a ações de um movimento recente batizado de Ocupação Preta. Nele, alunos negros de dentro e fora da USP “ocupam” aulas (mais de 15 desde março) para questionar o baixo número de alunos negros na mais renomada universidade brasileira.
O processo é quase sempre o mesmo: os integrantes entram na sala, param a aula e tentam angariar apoio. “Não é só o professor que tem responsabilidade nessa luta. Todo mundo dentro da sala também tem”, disse um dos membros em uma aula do curso de Geografia, antes de escrever na lousa as estatísticas: 53% de negros no Brasil, menos de 10% dentre os alunos da USP, 1% no corpo docente e 0% no Conselho Universitário, órgão colegiado legislador de maior poder.
As aulas ocupadas são escolhidas a dedo, seja por terem visibilidade (como a do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, na pós-graduação em Ciência Política), por concentrarem alunos aparentemente menos preocupados em discutir o tema (como a de microeconomia na FEA), seja por serem ministradas por professores contrários às cotas raciais na USP. Recentemente, ainda, eles recolheram 1,5 mil assinaturas entre a comunidade universitária para incluir a pauta sobre cotas raciais na reunião do Conselho da Graduação, instância deliberativa responsável pelo acesso à universidade.
“A adoção de cotas sociais por si só não resolve o problema da ausência de pessoas negras nas universidades. O desempenho de cotistas tem sido igual ou superior ao de não cotistas, o que mostra a eficácia do sistema de cotas em democratizar a universidade sem prejuízo algum à qualidade da instituição”, observou o coletivo em entrevista a Carta na Escola.
A ideia das cotas raciais, observa Leonardo Athias, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é acelerar um processo que levaria 200 anos para acontecer: negros em esferas da sociedade tradicionalmente ocupadas apenas por brancos. Assim, reparação e justiça social são os principais objetivos do sistema de cotas, que se enquadra no conceito de ação afirmativa.
Coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, João Feres Júnior explica, no entanto, que até mesmo medidas governamentais poderiam ser classificadas como ações afirmativas.
Ele compara as cotas a incentivos dados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, que conferem vantagens competitivas na forma de financiamentos a juros baixos para empresas de uma determinada atividade. “O fim último de toda ação afirmativa é o bem comum, seja para indígenas, seja para negros ou para um vinícola do Sul do País”, explica. “As ações afirmativas para estudantes no ensino superior são um avanço civilizacional muito grande. O Brasil sofre de um forte complexo de ‘brancura’, com os espaços de prestígio e poder inteiramente tomados por brancos. As cotas raciais quebraram esse monopólio.”
Quando o debate é sobre o foco da ação afirmativa, o especialista defende que tanto as cotas raciais quanto as sociais são necessárias, uma vez que a adoção de cotas sociais não é suficiente para erradicar a discriminação racial. “Basta olhar estudos sobre mobilidade social que mostram a maior probabilidade que brancos têm de melhorar sua posição social em comparação com pretos e pardos com o mesmo nível de renda. Parte da discriminação contra pretos e pardos independe de sua posição social.”
É a percepção de Adriano Ferreira da Silva, de 21 anos, que está no primeiro ano de Direito na USP. “Em uma entrevista de emprego, com duas pessoas pobres, mas uma sendo negra e a outra não, a que tem o fenótipo-padrão do branco será escolhida em detrimento da outra”, diz um dos quatro negros da turma de 60 alunos. “Eu mesmo já fiz diversas entrevistas na minha vida, mas os únicos empregos que consegui foram por meio de concurso público.”
Quando questionada sobre a adoção de cotas raciais, a USP se defende, lembrando que tem, desde 2006, o Programa de Inclusão Social (Inclusp) como política afirmativa. O plano é voltado para alunos de escolas públicas e baseado na meritocracia. Ele prevê bonificação de 12% em cima da nota do vestibular para o aluno que cursou o Ensino Médio em escola pública, 15% para quem cursou o Ensino Fundamental e o Ensino Médio na rede pública, e 20% para os alunos do Programa de Avaliação Seriada (Pasusp) que cursaram o Ensino Fundamental na rede pública e ainda estejam no segundo ou terceiro ano do Ensino Médio em escola pública. Há ainda um bônus extra de 5% àqueles que se declararem pretos, pardos ou indígenas.
A universidade orgulha-se de dizer que, em 2015, o número de ingressantes oriundos de escolas públicas na USP cresceu 8% em relação ao ano anterior, passando de 32,3% para 35,1%, enquanto o número de alunos matriculados na instituição que se declararam pretos, pardos e indígenas cresceu 8,4% em comparação a 2014.
Mas, para o Ocupação Preta, “os programas utilizados pela USP até o momento são falsas tentativas de inclusão usadas como subterfúgio para que não se discuta a implementação de reserva de vagas para egressos de escolas públicas, negros e estudantes de baixa renda”.
Ciente dos problemas de inclusão da universidade, o programa de pós-graduação em Antropologia Social quer trilhar um caminho diferente. Enquanto a FFLCH entende que “o Enem deve ser utilizado como mecanismo primordial para selecionar alunos oriundos de escolas públicas, incluindo-se reserva de vagas por cotas sociais e raciais”, o programa decidiu adotar cotas raciais para seu processo de seleção, proposta que está sendo examinada pela pró-reitoria de pós-graduação. Caso a ideia seja aprovada, será o primeiro curso dentro da USP a ter uma política de cotas. Procurada por Carta na Escola, a direção evitou fazer comentários com medo de atropelar o processo.
Seja na pós ou na graduação, o consenso entre estudantes é de que há certo desinteresse em falar sobre cotas na universidade. Os próprios alunos sentem dificuldade em abordar o tema fora do círculo discente. “Os professores nem discutem isso. O debate acaba ficando mais entre a gente”, conta Bruna Hernandez, de 19 anos, estudante de Ciências Atuariais na FEA.
Acusada de ser pensada para a elite branca paulistana, a USP parece ir, portanto, na contramão do restante do País, observa Feres Júnior. “São Paulo, o estado governado há mais de 20 anos pela centro-direita, é impermeável aos movimentos sociais e mantém o acesso às universidades públicas como privilégio de brancos de classe média”, condena. “Já na esfera federal, a combinação de ativismo social e governos de centro-esquerda permitiu a proliferação de ações afirmativas, culminando, em 2012, com a Lei nº 12.711, de cotas para o ensino superior em todo o País.”
Publicado na edição 98, de agosto de 2015
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