CIDADANIA
O invisível gaúcho negro. Um ensaio fotográfico
Alguém lembra de ter visto um negro de bombacha, num cavalo, ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra dançando num CTG gaudério? Difícil. A representação imagética gerenciada por cabeças brancas os omite
por Eduardo Tavares publicado 19/12/2014 10:58, última modificação 19/12/2014 11:12
EDUARDO TAVARES
Vilmar Fortes tem a força no nome e no olhar. Há também dignidade e paixão nesse olhar. Vilmar é negro e gaúcho. Um trabalhador rural que interage com seu ambiente com sapiência, habilidade e carinho. Sabe tudo da terra que pisa. A qual pisaram seus pais e seus avós, escravos, africanos, arrancados da sua terra natal com violência, por homens brancos, mercenários desalmados que visavam apenas a riqueza, muita riqueza.
Há mais de 15 anos Vilmar trabalha na Fazenda Capão Alto das Criúvas, em Sentinela do Sul, 110 quilômetros ao sul de Porto Alegre. Depois do mate ao alvorecer, ordenha as búfalas e vai aplicar os preparados biodinâmicos na lavoura de arroz orgânico que a família Volkmann produz. É tratado como um filho pelo patrão, João Batista, que reconhece: “Temos todo esse conforto hoje graças a essas pessoas que foram sequestradas, escravizadas e trabalharam com tanto sacrifício para o crescimento deste país. Devemos tudo a eles”.
Hoje Vilmar é um dos 1,8 milhão de afrodescendentes vivendo no Rio Grande do Sul, cerca de 16,3% da população. É uma cifra que impressiona os brasileiros que consideram o Estado sulista um reduto povoado apenas por brancos, descendentes de europeus. A existência do negro gaúcho é uma realidade que se esconde nas brumas do preconceito racial e da estratificação social. Essa discriminação se torna mais evidente no meio rural.
Alguém lembra de já ter visto alguma imagem de um gaúcho negro, de bombacha, montado num cavalo ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra dançando num CTG gaudério? Dificilmente. Esse é um fato que tem sido omitido na representação imagética da cultura gaúcha, normalmente gerenciada por cabeças brancas. O maior símbolo gaúcho, a estátua do Laçador, obviamente, é de um orgulhoso homem branco.
Essa deslealdade cultural levou este autor a dar a devida visibilidade ao afrogaúcho, produzindo a exposição fotográfica O Invisível Gaúcho Negro. Não foi um projeto que partiu de uma tese e de uma ida a campo para comprová-la. Na verdade, bastou um mergulho no próprio arquivo fotográfico. Uma coleção de fotos de negros no meio rural surgiu naturalmente ao longo dos anos e caminhos percorridos pelo interior do Rio Grande em reportagens para várias publicações. No campo, lidando com o gado, no fogo de chão do galpão, assando o churrasco, tomando mate, dançando a chula, competindo nos rodeios, cantando nos festivais, sempre, sempre, estava presente o negro, gaúcho. Fazendo tudo isso com maestria, paixão e orgulho. Mas, sempre, invisível na representação da cultura gaudéria.
Uma injustiça histórica a ser reparada. Navegando um pouco no nosso passado constata-se que em 1822 metade da população rio-grandense era negra. Consequência da bárbara escravidão que durou no Brasil até fins do século 19. Nossa biografia pátria carrega a vergonha de ser uma das últimas nações a acabar com a escravidão. O saldo, trágico, foram 5 milhões de africanos que pereceram no trajeto do tráfico da África para as Américas, sendo um dos maiores genocídios da história da humanidade. Ficamos atrás, apenas, do holocausto nazista.
Foi a força moral e física dos escravos sobreviventes, suportando toda sorte de sacrifícios e humilhações, que alavancou a economia do Rio Grande do Sul e projetou essa terra esquecida do sul como uma potência no cenário político e econômico brasileiro. Relatos de viajantes estrangeiros, como o botânico francês Auguste Saint-Hilaire, em 1821, comprovam a participação do negro em todas as atividades do cotidiano rural.
Numa charqueada, em Pelotas, registrou: “Há sempre na sala um negrinho de 10 a 12 anos, cuja função é prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é essa a única casa que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras”.
Para completar o massacre, os escravos foram os “patriotas” enviados para combater na Guerra do Paraguai e na Revolução Farroupilha. Com essa mortandade, aliada ao tráfico interno para os estados cafeeiros, em 1858 os negros gaúchos tinham sido reduzidos a 25% da população do estado.
A afirmação da identidade racial e a preservação da cultura afro no interior tem se cristalizado com muita força nos quilombos rurais. São mais de 50 em todo o estado, com uma concentração maior na zona litorânea. A comunidade quilombola Ibicuí da Armada está localizada no município de Santana do Livramento, na divisa com o Uruguai. São 35 famílias, totalizando 110 descendentes do escravo Manoel Vicente Vaqueiro. O sobrenome não é coincidência. É uma evidência da habilidade dos afrodescendentes no manejo da pecuária.
O escravo Manoel foi comprado em Pelotas, zona das charqueadas, pelo estancieiro Bragança e levado para Livramento. Com a abolição da escravatura o patrão, além da alforria deu-lhe um pedaço de terra. Manoel tinha tanta destreza na lida com o gado que acabou adotando o sobrenome Vaqueiro e, hoje, seus descendentes, além de herdarem o nome continuam preservando a cultura e são especialistas no artesanato com lã de ovelha. Dona Valeriana Vaqueiro, a matriarca, tem 97 anos, faz crochê, anda a cavalo e conta, com lucidez e emoção as histórias da família.
As gerações alemãs pós-guerra, herdeiras da vergonha do genocídio nazista, fizeram um “mea culpa” com a humanidade e mostraram que podiam ser uma nação civilizada. Os brasileiros, finalmente, estão assumindo a responsabilidade pela herança escravocrata e começaram a pagar a dívida com seus afrodescendentes, agora irmãos de sangue. Programas de inclusão e promoção social, como as cotas de ingresso nas universidades públicas e empregos estatais estão sendo criados para começar a consertar estragos da discriminação e do preconceito originados do poder oligárquico, quase sempre gerenciado pela elite branca.
Mas não bastam decretos. A mutação cultural demanda consciência e tolerância da sociedade. É no convívio diário, baseado no respeito, na solidariedade e na igualdade que vamos pagando nossa dívida do passado e mostrando que podemos, também, ser um povo civilizado e fraterno.
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