Jornalista baiana é impedida de tirar foto para passaporte com cabelo ‘black power’
Lília de Souza diz que sua foto não foi aceita pelo sistema: ‘padrão desvaloriza o que foge do convencional’
RIO — A jornalista baiana Lília de Souza, de 34, tinha uma obrigação rotineira programada para a última terça-feira: renovar o passaporte, que vencerá em agosto. Mesmo após espera de 7 horas na unidade da Polícia Federal do Salvador Shopping, na capital baiana, a hora de tirar a foto para o documento não foi um alívio, e sim um "enorme constrangimento": agentes da PF perguntaram se Lília poderia prender seu cabelo estilo "black power", já que o sistema de imagens não aceitava a imagem gerada, por causa do formato dos fios.
— Falaram: "o problema é o seu cabelo". Achei muito estanho ouvir isso, mas não cogitei não fazer o passaporte. Estava chateada, mas disse "se não tem jeito, tá". Aí peguei um elástico de borracha para prender o cabelo. Tenho uma relação muito forte com a minha identidade negra. Eu gosto do meu cabelo e, naquela foto, fiquei terrível — conta ela, que chegou a chorar do lado de fora do SAC.
Lília descarta qualquer tratamento racista por parte dos funcionários do local. Ela conta que chegou a conversar com duas policiais, que disseram que episódios daquele tipo eram recorrentes. A situação gerou uma mágoa na jornalista que durou até o dia seguinte ao ocorrido, quando ela escreveu o que chama de "desabafo" no Facebook, relatando todo o ocorrido. O texto foi compartilhado 484 vezes na rede até a publicação desta reportagem.
— A gente que vê que é o padrão. Um padrão que desvaloriza um determinado formato. Se você não faz parte do convencional, o sistema simplesmente rejeita. Essas coisas podem não ser intencionais, mas tudo, no fundo, tem um padrão que desvaloriza a estética que foge do convencional.
Lília conta que desde o momento em que publicou a história no Facebook, vem recebendo apoio de pessoas solidárias, incluindo movimentos sociais de combate ao racismo e advogados. Ela ainda está estudando se vai entrar na justiça por causa do episódio e afirma que já sofreu com manifestações racistas "nas pequenas coisas"
— Tem gente que não gosta e gosta do meu cabelo. Ouço todo tipo de comentário. É uma coisa pela qual todo negro passa. Quem é o negro que abre a boca no Brasil para dizer que nunca sofreu preconceito? A gente sofre preconceito nas pequenas coisas, no dia a dia. É cultural.
O Delegado Thiago Sena, chefe do setor de Comunicação Social da Superintendência da Polícia Federal na Bahia afirmou que a questão é meramente técnica. De acordo com o delegado, um cabelo de proporções maiores acaba diminuindo o rosto do fotografado, e foi isso o que o sistema acabou impedindo no caso de Lília. Ele acrescenta que esse foi o primeiro caso com essas características registrado pela PF na Bahia.
— O problema foi tecnológico. Não é que não possa tirar foto com cabelo "black power", claro que pode. A gente concorda com ela que isso é inadmissível. O caso já foi passado para a nossa sede em Brasília, para sabermos que medidas podem ser adotadas.
Edson França, presidente da União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO) acredita que esse foi um episódio isolado:
— Estou entre aquelas pessoas que acreditam que houve grandes avanços na luta discriminatória. Não houve um padrão discriminatório, esse é um incidente localizado. Foi uma situação muito inusitada, embora a gente ainda tenha problemas de racismo no país.
Já o Coletivo Pretas Candangas, de Brasília, acredita que houve indícios de preconceito.
— De fato, tem um fator discriminatório. Se ela tivesse cabelo liso, provavelmente seria aceito — afirma Uila Cardoso, uma das integrantes do coletivo.
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