observatório - Imigrantes haitianos são escravizados no Brasil - Stefano Wrobleski / Repórter Brasil - 23 de janeiro de 2014
O Haiti é o país em que ocorreu a mais famosa revolta de escravos durante o período colonial. Em 1794, milhares de pessoas começaram uma revolta que culminou na abolição da escravidão do país, tornando-se o primeiro do mundo a abolir a prática. O processo abalou proprietários de escravos em toda a América e inspirou diferentes mobilizações em outros países. Mais de dois séculos depois, haitianos voltam a ser escravizados, agora no Brasil. Ao todo, 121 migrantes foram resgatados de condições análogas às de escravos em duas operações diferentes realizadas em 2013. Na maior delas, em que 100 pessoas foram resgatadas, o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, que acompanhou ação de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego, comparou a situação em que um grupo estava alojado com a da escravidão do passado. “Uma das casas parecia uma senzala da época da colônia, era absolutamente precária. No fundo, havia um espaço grande com fogões a lenha. A construção nem era de alvenaria”, afirmou.
Soldados brasileiros no Haiti. Foto: Divulgação/Exército Brasileiro
A exploração de migrantes no Brasil está relacionada à ausência de políticas públicas adequadas, que deixa milhares de pessoas em situação vulnerável. A estimativa é de que 22 mil haitianos migraram para o país desde 2010, ano em que aconteceu o mais intenso terremoto da história do país. O Brasil, à frente das tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) que invadiram e ocupam o Haiti desde 2004, virou um dos destinos escolhidos entre os desabrigados na tragédia.
Os dois casos de trabalho escravo recentes são os que mais ganharam destaque e receberam atenção das autoridades. Movimentos sociais e organizações que trabalham em defesa de direitos de migrantes ouvidas pela reportagem alertam que os casos se multiplicam no país e que há violações que não se tornam públicas.
Anglo American
O principal caso envolvendo a libertação de haitianos no Brasil até hoje culminou no resgate de 172 trabalhadores – entre eles, os 100 haitianos que viviam em condições degradantes. O flagrante de escravidão aconteceu em uma obra da mineradora Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, que tem população de 18 mil habitantes e fica a 160 quilômetros de Belo Horizonte. A fiscalização aconteceu em novembro de 2013 a pedido da Assembleia Legislativa de Minas Gerais depois que a chegada da mineradora foi discutida em uma audiência pública. “Houve um incremento de cerca de 8 mil trabalhadores por conta da presença da mineradora e a cidade não estava preparada”, explica Marcelo.
O principal caso envolvendo a libertação de haitianos no Brasil até hoje culminou no resgate de 172 trabalhadores – entre eles, os 100 haitianos que viviam em condições degradantes. O flagrante de escravidão aconteceu em uma obra da mineradora Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, que tem população de 18 mil habitantes e fica a 160 quilômetros de Belo Horizonte. A fiscalização aconteceu em novembro de 2013 a pedido da Assembleia Legislativa de Minas Gerais depois que a chegada da mineradora foi discutida em uma audiência pública. “Houve um incremento de cerca de 8 mil trabalhadores por conta da presença da mineradora e a cidade não estava preparada”, explica Marcelo.
Haitianos resgatados afirmam que foram informados de que não poderiam deixar o emprego antes de três meses |
Uma das casas onde os resgatados em Minas Gerais dormiam estava sendo reformada e ainda não tinha camas ou piso (Foto: MTE)
Tanto a Anglo American quanto a Diedro, construtora contratada pela Anglo American para a obra em que ocorreu o resgate, negam a responsabilidade pelo caso. Os resgatados trabalhavam na construção de casas onde viverão os empregados da mineradora, que planeja a exploração de minério de ferro na região em um projeto de mais de US$ 5 bilhões, conforme anunciado no site da empresa. Procurada pela Repórter Brasil a Anglo American afirma , em nota, que “atua rigorosamente de acordo com a legislação trabalhista e exige de suas terceirizadas o mesmo” e informou que “possui um rígido controle sanitário de suas contratadas, aplicando multas, notificações e treinamentos sempre que identificados desvios”.
A Diedro afirma ter sido “injustamente acusada de aliciamento na contratação desse grupo [nordestinos]. Os sergipanos foram contratados de acordo com as normas da legislação brasileira e a Diedro possui cópias de toda documentação, carteiras de trabalho e contracheque”. As empresas firmaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho se comprometendo a regularizar a situação de todas as vítimas e a pagar R$ 100 mil em indenização por dano moral coletivo.
Minha Casa Minha Vida
Outra libertação envolvendo haitianos aconteceu em junho de 2013 na capital do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com a fiscalização, as 21 vítimas foram alojadas em uma casa em condições degradantes. Além de superlotada, faltava água com frequência e não havia camas para todos. Elas haviam sido contratadas para a construção de casas de um conjunto residencial financiado com verbas do programa de habitação do Governo Federal, Minha Casa Minha Vida, em que flagrantes de trabalho escravo têm sido constantes.
Cama improvisada na frente de alojamento de trabalhadores haitianos de obra do Minha Casa Minha Vida em Cuiabá (MT) (Foto: MTE)
Na carteira de trabalho, o registro foi feito em nome de uma empresa terceirizada pela Sisan Engenharia, a construtora responsável pela obra. Depois de duas semanas de trabalho, a terceirizada demitiu os funcionários sem pagar nenhum salário, o que só aconteceu depois que a fiscalização chegou ao local. Como os empregados trabalhavam na mesma atividade-fim da Sisan, a terceirização foi considerada ilícita com base na súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho e a empresa foi responsabilizada pelo problema. A Repórter Brasil procurou a Sisan para comentar o fato, mas a empreiteira não respondeu ao pedido de entrevista.
Longe de casa
O caminho percorrido entre o Haiti e o Brasil é longo e difícil. Do país caribenho, a maioria dos haitianos viaja dois mil quilômetros de avião para o Equador, que não exige visto de nenhum país do mundo. Por terra, eles cruzam a fronteira com o Peru e seguem viagem até Brasileia – um pequeno município acriano com cerca de 21 mil habitantes –, em um percurso de mais de 3,6 mil quilômetros.
Quase seis mil quilômetros: da capital Porto Príncipe (A), os haitianos com destino ao Brasil vão de avião até o Equador (B) e percorrem o Peru para entrar no país com destino a Brasileia, no Acre (C) (Imagem: Reprodução/Google Maps)
Em janeiro de 2012, a obtenção de vistos de haitianos no Brasil foi limitada a 1200 vistos permanentes de caráter humanitário por ano, emitidos somente na embaixada brasileira em Porto Príncipe (no mesmo mês, por pressão do governo brasileiro, o Peru passou a exigir vistos dos haitianos que entrassem no país). A limitação de 1200 vistos por ano caiu em abril de 2013 e, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores, foram emitidos mais de cinco mil vistos aos migrantes do Haiti só no ano passado.
Quando os haitianos chegam a Brasileia, equipes do Sistema Nacional de Emprego (SINE) – vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – e do Governo do Estado do Acre emitem os documentos necessários para que os migrantes possam morar e trabalhar no Brasil, além de auxiliá-los a conseguir emprego.
Empresas que contratam empregados em locais distantes são responsáveis por garantir a contratação e o transporte |
Nem sempre, porém, empregadores e trabalhadores têm recebido as orientações corretas. No caso da Anglo American, representantes da empresa afirmam que chegaram a consultar o próprio SINE e o Governo do Acre, mas alegam não ter sido informados de que deveriam efetuar a contratação antes da viagem do Acre para Minas Gerais, conforme determina a lei. Trata-se de uma exigência da Instrução Normativa nº 90/2011 do MTE, que prevê que a empresa que contrata empregos em locais distantes é responsável pela segurança no transporte e por arcar com custos no caso de eventuais acidentes que aconteçam no caminho. A medida evita a superexploração em condições análogas às de escravos ao impor, também, a necessidade de informar ao MTE sobre o transporte.
O auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos questionou a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre sobre o caso e recebeu como resposta que a pasta “não é agência de emprego”. “Nos dispomos a fazer a ponte entre empresa-haitiano por razões humanitárias”, diz o texto assinado por Francisca Mirtes de Lima, coordenadora da Divisão de Apoio e Atendimento aos Imigrantes e Refugiados, órgão subordinado à secretaria mencionada. O posicionamento é questionado pelo auditor que fez o resgate dos trabalhadores. “Como é que o Governo do Estado do Acre e o SINE patrocinam essa contratação ao arrepio da lei e em uma situação de vulnerabilidade tão acentuada?”, pergunta Marcelo.
A Repórter Brasil procurou ouvir o SINE no Acre, mas não recebeu qualquer resposta do MTE até o fechamento desta matéria. O secretário de Justiça e Direitos Humanos do Acre, Nilson Mourão, não respondeu aos telefonemas.
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