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OBSERVATÓRIO - Com 10 milhões de fãs, funk é hino de identidade para jovens brasileiros da periferia - REVISTA VEJA

Batidão é muitas vezes música vulgar, e há até funkeiros que exaltam o crime. Mas gênero representa como nenhum outro aspirações das classes C, D e E

Sérgio Martins
MC Guimê

Tchudum, tchá, tchá, tchá, tchá, tchudum, tchá, tchá, tchá, tchá, tchudum... São 2 horas da manhã numa casa noturna de São Paulo e os frequentadores estão dançando uma batida eletrônica repetitiva. Dali a uma hora e meia, MC Guimê, o principal nome do funk ostentação, fará seu show, acompanhado de um DJ e de duas dançarinas, e com a participação especial do rapper Emicida. No clube vigora uma saudável mistura social, mais rara em São Paulo, onde centro e periferia são muito distantes, do que no Rio. Encontram-se ali jovens de bairros suburbanos — os meninos com correntes douradas, as meninas com saia bem curtinha, e todos com roupas de grife — e também os chamados “playboys”. Quando Guimê finalmente sobe ao palco, a temperatura da casa parece subir. Por quarenta minutos, ele intercala canções de seu repertório com sucessos de outros funkeiros, canta o rap do quarteto Racionais MC’s e cita o Salmo 23 (“O senhor é meu pastor / Nada me faltará”). Nada falta mesmo: suas letras carregam uma tal profusão de marcas — carros, roupas, perfumes, bebidas — que até se poderia suspeitar de vultosos contratos de merchandising. Não é o caso. Para Guimê, natural da periferia de Osasco, cidade da Grande São Paulo, falar desses objetos de consumo — e, acima de tudo, adquiri-los — é uma aspiração realizada, uma senha para a entrada na sociedade. O público não só entende como compartilha o sonho de Guimê: muitos fãs, no meio da dança, erguem garrafas de uísque escocês como se fossem troféus. Festas e shows assim se repetem por outras cidades e clubes. Como tantos gêneros musicais que vieram das áreas urbanas mais pobres, o funk já conquistou parte da classe média. Mas é sobretudo entre a garotada da periferia que ele tem a ressonância de uma Marselhesa: um hino de cidadania e identidade para os jovens das classes C, D e E.
Segundo estudo do Data Popular, instituto especializado em pesquisas de opinião nos estratos emergentes do país, a “comunidade funk” hoje congrega 10 milhões de brasileiros com mais de 16 anos, a maioria das classes C e D. É um público fiel: 77% deles escutam funk todos os dias e 50% vão a um baile funk pelo menos uma vez por mês. Esse público se divide quando perguntado sobre o sentido que a música tem em sua vida: 22% consideram que o funk é apenas diversão, um ritmo bom de dançar. Mas 26% acreditam que os MCs convidam a ambições que não cabem na pista de dança: o funk seria uma forma de superação. Em bom momento comercial, o funk representa uma possibilidade de carreira para quem sonha em se tornar MC (sigla em inglês de Master of Cerimonies, o cantor do funk e do rap). Uma única canção de sucesso pode garantir boa base financeira, ainda que, como sempre aconteceu no showbiz, existam promessas de estrelato que acabam em fracasso (leia o quadro ao fim da reportagem). Mesmo sem o status de um Naldo ou de um Mr. Catra, um funkeiro de algum talento pode garantir mais do que a subsistência. “Um MC pode fazer trinta bailes por mês ao cachê de 1 000 reais. Em seis meses, terá condições de montar um negocinho na favela, comprar uma casa e um carro”, calcula o DJ Marlboro, um dos precursores do batidão. O sonho de todos, claro, é chegar às alturas. MC Guimê fez fama e dinheiro — ganha em torno de 1,4 milhão de reais por mês e o vídeo de seu Plaquê de 100 tem mais de 42 milhões de visualizações no YouTube — sem comercializar discos. Mas as gravadoras descobriram que o funk é rentável. Naldo Benny e Anitta trocaram o ritmo mais pesado dos “batidões” pelo funk melody — versão, digamos, pacificada do funk da periferia carioca — e com isso alcançaram públicos mais amplos. Naldo produz os próprios discos, mas tem um contrato de distribuição com a Sony Music. Anitta é do cast da Warner, que mais recentemente contratou MC Ludmilla (ex-MC Beyoncé). A Universal tem MC Gui, outro exponente do funk ostentação. Casas de shows como o Barra Music, no Rio, incluíram o funk entre as atrações frequentes. “Hoje existe um cuidado maior do funkeiro com a produção”, diz Marcos Júnior, diretor artístico do espaço.
Há diferenças entre o funk carioca, mais malicioso e sexual (ou mais bandido), e o paulista, que tem mais influência do hip-hop. O chamado “funk ostentação”, que celebra o consumo e o luxo, é um produto paulista: suas raízes estão na Baixada Santista, no litoral de São Paulo, com as produções do DJ Baphaphinha e com artistas como MC Boy do Charmes. Como tantos gêneros populares — axé, sertanejo, tecnobrega —, o funk, em qualquer lugar, irrita ouvintes que se pretendem mais sofisticados. Agora que o purismo nacionalista caiu de moda, ataca-se o funk brasileiro por não ser similar à sua matriz americana. Realmente, não há quase nada de James Brown no funk brasileiro de agora. Mas suas origens estão nos bailes do Rio de Janeiro dos anos 70, onde se tocavam funk e soul, americanos e brasileiros. Com o tempo, a batida sofreu alterações. A princípio, o ritmo mais comum era o chamado Miami Bass, batida acelerada que surgiu na cidade americana da qual recebeu o nome. Hoje, o funk ganhou um batuque brasileiro, que parece saído dos terreiros de umbanda. A essa invenção rítmica se deu o nome de tamborzão. Não, não é uma contribuição para a música popular internacional da estatura da bossa nova — mas tem lá sua originalidade. “Lá fora, o funk é reconhecido como a música eletrônica brasileira”, defende o cantor Mr. Catra. Muitos MCs não têm a mínima noção de tempo, mas há criatividade nas suas produções, sobretudo na conjugação inusitada de samples, que vão do grupo americano Talking Heads ao tema do desenho animado Tom e Jerry. Mais pertinente, ainda que às vezes tingido de moralismo estreito, é o ataque ao conteúdo sexual do funk. Muitas letras são incontestavelmente grosseiras. “Se as pessoas gostam de falar sobre sexo, por que eu não posso cantar a respeito?”, justifica-se Mr. Catra. Ele é o cantor de Negolossauro rex, cuja letra é até publicável: “Vem você, a sua prima, pode chamar a sua amiga / Instinto de leão, pegada de gorila”.
Os bailes funk, por seu caráter improvisado, também configuram um problema urbano. Em São Paulo, a prefeitura proibiu os bailes de rua com carro de som, pela boa razão de que eles perturbavam a paz — as pessoas na periferia, afinal, trabalham e desejam dormir à noite. Ainda mais complicada é a intersecção do funk com a bandidagem, que vigora sobretudo no Rio. Nos anos 90 surgiram nas favelas os chamados “proibidões”, bailes protegidos ou patrocinados por facções criminosas. O “proibidão” tornou-se quase um subgênero do funk, com letras que exaltam criminosos e, de tão recheadas de gíria, parecem falar em código. Um exemplo é “a balinha do Salgueiro” de que fala uma das canções do repertório do Nego do Borel: trata-se de ecstasy. O elogio aberto ao crime arrefeceu com a tomada de favelas pelas Unidades de Polícia Pacificadora. Em alguns casos, a UPP reprimiu bailes funk. Mas muitos sobrevivem, como o Emoções, na favela da Rocinha, que voltou à atividade após um ano parado.

Funk: a Marselhesa da periferia

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A BATIDA DA SUPERAÇÃO 

Natural de Osasco, na periferia de São Paulo, Guilherme Aparecido Dantas, o MC Guimê, 21 anos, teve de driblar a desconfiança dos pais, que não queriam vê-lo metido com funk. Foi esnobado por MCs e promotores de shows, que o deixavam horas esperando. Mas hoje ele é o grande nome do funk ostentação de São Paulo. Só não gosta muito do rótulo: “Faço funk. ‘Ostentação’ foi um nome criado pela galera”. A cada mês, Guimê faz quarenta shows e ganha 1,4 milhão de reais. Suas letras falam, sim, de produtos de consumo de luxo. Mais do que ostentação, porém, Guimê trata de superação. “Quero mostrar quanto batalhei para atingir meu objetivo”, diz
“Contando os plaquê de 100, dentro de um Citroën / Aí nóis convida, porque sabe que elas vêm / De transporte nóis tá bem, de Hornet ou 1100 / Kawasaki, tem Bandit, RR tem também / Nóis mantém a humildade Mas nóis sempre para tudo”
Plaquê de 100, de MC Guimê     

 
A despeito da profissionalização de suas maiores estrelas, o funk ainda é uma atividade informal. Os MCs gravam em estúdios caseiros e divulgam músicas e clipes em redes sociais e sites de vídeo. Muitos empresários não têm o mínimo tino para negócios. “Geralmente, o primeiro empresário de um funkeiro é o taxista ou o motorista que o leva para os shows”, diz Kamilla Fialho, empresária de Anitta — responsável por configurar a música de sua cliente em um formato mais pop, o que rendeu uma vendagem de 200 000 discos. Leandro Gomes, empresário de Valesca Popozuda, também faz seus cálculos para agradar ao mercado de classe média. Mas não cogita suavizar o batidão pesado de sua cliente: “Hoje o funk reflete a cultura do carioca com muito mais propriedade do que o samba”, diz Gomes. De fato, o samba já não traduz a alma da periferia como faz o funk. MC Guimê fala de marcas, mas também de autoafirmação. MC Smith, que já cantou o “bonde” do crime no Complexo do Alemão, faz retratos tão rea­listas da periferia carioca que parecem roteiros de filme. MC Ludmilla e Valesca Popozuda assumem uma posição de confronto junto aos homens, sem queimar sutiãs. E, como já fez o samba, o funk tece o elogio ufanista da brasilidade. Em País do Futebol, que começa com “um salve à nossa nação”, o paulista Guimê reza ao Cristo Redentor, símbolo carioca. E proclama: “A rua é nossa, e eu sempre fui dela”. A rua hoje é do funk.

O bonde do quase lá

A mitologia do pop não pode passar sem artistas de sucesso que caem no ostracismo. Não é diferente com o funk. Hoje com 32 anos, a mulher que um dia foi conhecida como MC Vanessa Pikachu voltou a ser Vanessa Ferreira. Pikachu despontou no início dos anos 2000 com um funk que comparava o insuportável monstrinho do desenho Pokémon com certa parte da anatomia masculina. Mas suas músicas seguintes não emplacaram. “O azar de Vanessa foi surgir num período em que funkeiro fazia show apenas em clubes de subúrbio ou na favela. Nunca tocou em boates, como a Anitta e o Naldo fazem hoje”, diz o DJ Tubarão, radialista e produtor. A desilusão de Vanessa com a carreira chegou ao limite quando ela se viu preterida por outra funkeira na gravação do DVD do MC Bola de Fogo, no qual cantaria Atoladinha. Ela hoje dá aulas de educação física em uma academia (embora sua mãe sonhe com o retorno da filha ao batidão). Diz que foi mal assessorada: “Meu empresário era o DJ que me deu a primeira chance num palco. Ele não tinha experiência”. O trio Os Originais não desistiu do funk, mas está com a carreira emperrada em uma disputa judicial. Com outro nome — MC Federado e os Leleks —, eles estouraram com Passinho do Volante (aquela do “ah lelek lek lek”). Edmar Santana, o MC Dieddy, o primeiro empresário dos Originais, e Rômulo Costa, proprietário da equipe de som Furacão 2000, disputam na Justiça os direitos sobre o Passinho do Volante. Enquanto o caso se arrasta, Paulo Victor, Alan Johnson e Alex Junior estão impedidos de cantar seu maior sucesso (hoje no repertório de outro grupo, que assumiu o nome MC Federado e os Leleks). Rebatizados de Os Originais, eles lançaram a canção Desloca, que esperam ver estourar na Copa do Mundo. O caso de Vanessa e o dos Originais não estão entre os mais dramáticos do funk. Goró, da du
Luiz Maximiano
pla Márcio e Goró, suicidou-se em 2000 porque não conseguia repetir o sucesso de A Distância. MC Naldinho, de Um Tapinha Não Dói, largou o funk pela religião evangélica, trajetória que não é incomum entre artistas dessa vertente lasciva. “A igreja evangélica é a psicanálise da favela”, diz Julio Ludemir, autor de 101 Funks que Você Tem que Ouvir Antes de Morrer.

QUINZE MINUTOS DE FAMA - Os intérpretes de Passinho do Volante (“ah lelek lek lek”) e a hoje professora de academia Vanessa Pikachu: carreira empacada

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